Seu João


"Seu" João. Ele é porteiro aqui do prédio desde que aqui viemos morar, há - sei lá - uns quinze anos. Me viu crescer, passou muito a mão na minha cabeça, brigou um bocado comigo e com o Vinícius (na infância meu grande parceiro de danações condomínio adentro), nos aturou dias inteiros lá embaixo, contou várias de suas histórias de vida, nos deu conselhos e nos deu, até, o privilégio de almoçarmos com ele várias vezes (já que nos fins de semana chegávamos, eu e o Vinícius, ao ponto de levar nosso almoço lá pra baixo, só pra comermos em sua companhia). Pois é, o "seu" João, hoje vejo, foi, em várias e várias felizes tardes infantis de minha vida, um pai pra mim.

Mas o curioso - pra não dizer triste - é que até hoje ele continua lá embaixo, cumprindo a mesma rotina daqueles dias que me soam tão distantes e saudosos; trabalhando, como já fazia àquela altura, em dias alternados e no mesmíssimo horário (sete da manhã às sete da noite). Ele continua lá, abrindo e fechando os portões da garagem para que hoje eu, sem sequer vê-lo de dentro do carro, saia - ao contrário daqueles dias - sem lhe pedir permissão e sem lhe dizer aonde vou. Claro que quando saio a pé (portanto passando por sua guarita) faço questão de falar com ele, perguntar-lhe como vai; mas ainda assim me sinto um tanto mal agradecido, distante dessa pessoa que tanto carinho me deu e que contribuiu, sim, para a pessoa que hoje sou.

Às vezes sorrio - embora de vez em quando me impaciente - quando ele, que já não é nenhum mocinho, demora uma eternidade pra abrir o portão, ou quando desliga o interfone na nossa cara, denotando seu jeito durão-carinhoso que aprendi a admirar e a até achar divertido. Ele nunca teve filhos e nunca se casou (mas não, ele não é o que você está pensando, embora, se fosse, não fizesse rigorosamente nenhuma diferença), e, segundo conta, casamento e filho foram as melhores coisas que (não) fez até hoje.

Acho que todo mundo tem um "seu" João na vida. Aquela pessoa a quem na infância você era superapegado, mas que depois de adulto você, sem querer, vê o brilho, o amor, o encantamento por ela se diluírem em algum lugar frio e indiferente de nossa memória. Se eu puder lhe dar um conselho, não perca tempo: tire, como eu, uma tarde de um dia qualquer, compre um presente (eu lhe comprei inclusive um livro, já que ele sempre gostou de ler), e converse sossegadamente com essa importante pessoa da sua vida. Garanto que será bom mais uma vez admirá-lo, mas garanto, sobremaneira, que você fará o dia do seu "seu" João bem mais feliz.


Frase do dia:
"(...) compreendeu de leve que o segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão."
Gabriel García Marquéz

Comentários

  1. Tenho refletido bastante com as suas crônicas.
    Ansiosa já para o próximo post,estou lendo sempre.
    Um abraço e boa semana.

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  2. Luquete,

    Você de fato carrega na bagagem as coisas mais preciosas desta vida. Não tenho dúvidas que é um vencedor. Poucos, muito poucos neste mundo se dão ao trabalho de reconhecer nas pessoas simples o brilho da vida e menos ainda de agradecê-las por existirem. Não que mereçam vida tão dura, às vezes servil e maldita. De modo algum! É que o fato deles existirem nos mostra o quanto pequenos somos. O quanto somos mal agradecidos em nossa sorte. Pode mostrar também, e é isso que quero enfatizar a ti agora, que o mundo precisa de nós para mudar, para ser um mundo melhor e dar vazão ao "Seu" e ao "meu" João de serem pessoas melhores, mais cultas, mais crentes, de se desenvolverem como desejem, de viajarem quando quiserem, de comerem o que bem entendam. Assim, que você use de seu olhar precioso para reverter a velha ordem na construção de um mundo honroso. Esse que dará aos Joãos, às Marias, aos Josés, aos Lucas e aos Pedros, bem como às raras Bernadetes, o direito de serem felizes e plenos em sua pequena e preciosa passagem por aqui. Valeu! Beijão

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  3. Já viu "santiago", filme do joão moreira salles? Tua crônica sobre seu joão me lembrou o filme.
    Vou levar pra tu.
    beijos

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