Em extinção


Tem gente que, não sei como, consegue, mesmo depois da infância, guardar como que uma inocência, uma pureza. É meio complicado de explicar, mas prometo me empenhar na tentativa. Falo de gente que carrega um olhar mais verdadeiro, uma energia mais humana, um aperto de mão ou um abraço mais caloroso. Gente que, por alguma sorte ou graça divina, cultiva uma singeleza de encher os olhos, uma ingenuidade quase inexistente no gênero humano. São aquelas pessoas que conseguem lhe perguntar um tradicional e corriqueiro "tudo bom?" querendo - de fato e nada mais além disto - saber como você está. Gostaria de lembrar agora algum bicho que esteja bastante ameaçado de extinção, só pra dizer que esse tipo de ser humano, descrito acima, está na mesma situação.

Mas ainda existem alguns. E um deles vive, pra minha grata felicidade, sob o mesmo teto que eu. O nome dela é Neide. Francineide, na verdade, mas a vida, que tudo simplifica, tratou de praticamente lhe mudar o nome, que certamente sua mãe escolheu com tanto amor (e um pouco de criatividade, cá pra nós). A Neide é uma das poucas pessoas com quem eu me sinto completamente à vontade quando estou ao lado. Posso puxar as conversas mais malucas, posso cantar, posso ficar no mais absoluto silêncio, e sinto que ela não me julgará de maneira nenhuma, nem a mim nem a ninguém. Sei que continuará sem me reclamar rigorosamente nada, me amando como quer que eu me comporte.

Várias vezes, quando penso que não estou fazendo nada, estou na cozinha, em sua companhia, e não só pelos motivos que já citei, mas também porque ela é dona de uma inocência às vezes tão viva, que consegue ser engraçada. Ela detém, por exemplo, um vocabulário próprio interessantíssimo, do qual infelizmente só recordo agora algumas palavras. Despertador diz-se, no seu dicionário, espertador, o que, morfologicamente analisando, faz todo o sentido, já que a pessoa, ao ser acordada pelo dito aparelhinho, estará espertada; ou seja, esperta para um novo dia. Operadora (tipo Tim, Oi, essas coisas) diz-se, no seu linguajar, imperadora, com que vemos novamente a riqueza linguística da palavra, já que essas empresas mais imperam do que operam. Ah, antes que digam que estou, em nome de uma simples crônica, debochando de tão boa pessoa, informo que estou cansado de, às gargalhadas, tentar em vão corrigi-la, mas cada vez mais me convenço de que seu dialeto nada mais é do que uma evolução do nosso. Outro dia, (só pra finalizar) eu estava calado, quando ela me disse: "Rapaz, teve um terremoto por aí que matou num sei nem quantas mil pessoas!" Naturalmente, então, lhe perguntei: "Onde?" E ela, despretensiosa, enquanto lavava uns pratos, arrematou: "Parece que foi lá na escala Richter."

Essa é a Neide, ou um pouquinho dela. Dona de um coração tão grande quanto seu corpo (mas que ela não escute esse meio-elogio), é uma das pessoas que - além de terem sempre meu amor mais puro todo, todinho a seus pés - mereciam uma placa com um dizer muito simples: ameaçados de extinção.


Frase do dia:
"O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!
Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar..."
Fernando Pessoa

Comentários

  1. oh Luquinhas, que bonitinho, amei! essa é simpliesmente a sua NEIDE, e tu és o menino dela.saudade de ti e dela tambem.beijos tia tereza

    ResponderExcluir

Postar um comentário