Únicos, pelo que colhemos


Aqui acolá a gente ouve alguém lançando esta frase, muitas vezes na tentativa de levantar o astral de quem anda meio de baixa: você é único!

Somos únicos, será?

Concordo que cada um carrega consigo sua unicidade, ainda que reconhecer com precisão onde está a singularidade de alguém seja das tarefas mais difíceis. Pode estar no jeito tímido e verdadeiro de sorrir, no olhar brilhante que fala por si ou mesmo na fala engraçada e naturalmente acelerada que faz vibrar quem está por ali. O certo é que há, sim, em cada um, algo que é só seu – você é único.

Mas o que poucas vezes paramos pra pensar é que nossa singularidade na verdade resulta de uma soma caótica, quase indecifrável de tudo aquilo que colhemos durante nossa vida. Porque sinceramente não acredito muito neste negócio de que já nascemos com aquilo que nos fará exclusivos.

Não duvido do poder da genética, pelo contrário, tanto que vou aproveitar pra contar uma história recente, que muito me impressionou: um dos cachorros lá do sítio, o Czar, sempre foi muito medroso, muito mesmo. Soava até meio ridículo, um Fila Brasileiro tamanho GG que se tremia todo quando a gente ia passar a mão na cabeça dele. Pois bem. Um dia o Czar veio a Fortaleza para um encontro amoroso com uma cadela de sua raça. O encontro aconteceu às mil maravilhas (o medo dele sempre se restringiu a humanos, em assuntos sentimentais ele nunca demonstrou sinais de fraqueza), e o nosso digníssimo cão voltou para casa com o dever cumprido: engravidou sua parceira de uma noite só. Mas infelizmente, poucos meses depois de assegurar pela última vez a continuidade de sua geração, o Czar – ainda me dói a lembrança – morreu. Para substituí-lo, então, pedimos um dos filhotes que ele fizera com sua breve companheira, e o recebemos de braços abertos. Para nossa surpresa, porém, o Czar Filho herdou o jeitão medroso do pai, mesmo nunca o tendo conhecido.

Mas voltemos ao ponto. Vinha dizendo que prefiro acreditar que nossa singularidade nasce mesmo é daquilo que absorvemos em cada pessoa que cruza nosso caminho, nossa existência. Desse processo lento, viscoso é que emerge nossa unicidade. Às vezes consciente, mas quase sempre inconscientemente, aprendemos alguma coisa com cada ser que passa por nós, sempre.

Lembre-se de uma pessoa, qualquer uma.  Agora tente evocar aquilo que ela lhe trouxe de mais importante, a maior contribuição que ela lhe deu, aquilo que, lhe restando só um dia de vida, faria você deixar a última gota de orgulho de lado só pra dizer a ela: obrigado por ter me feito uma pessoa mais... e aí você completa: sensata, serena, corajosa, sorridente, amante da vida, errante, solitária (que a solidão também é importante), tímida, trabalhadora, extravagante, preguiçosa, cética, humilde. Alguma coisa essa pessoa em quem você pensou lhe deu, mesmo que você não consiga enxergar ou não queira admitir.

Sabe aquela ex-namorada que lhe magoou, aquela ex-esposa que lhe abandonou, aquele amigo que lhe chateou? Todos eles semearam algo bom em você. Se você cultivou essa semente, é uma outra história.

Somos únicos, concordo. Mas com uma ressalva: somos únicos não pelo que voluntariamos ser, mas sim pela nossa capacidade de absorver o que tangencia nossa trajetória. Vamos colhendo, colhendo, até que, um dia, floresce um ser exclusivo – tão mais exclusivo quanto maior for essa sua capacidade de absorção.


Frase do dia:
"A música é o silêncio em moviemento."
Jayme Ovalle

Comentários

  1. adorei! preciso de um cachorro com esse jeito do Czar, kkkkkkkkkkk, pq eu tenho medo de cachorro!Tádila

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