Ela, na lembrança

Na mesma praça, de formato retangular e perto de minha casa, corríamos em direções contrárias — ela em sentido horário, e eu, anti-horário. Estávamos em direções opostas, e não poderia haver algo mais simbólico: nossas vidas, que nunca caminharam juntas, que nunca sequer se conheceram, que jamais se tangenciaram mundo afora, não dariam a mim, numa breve corrida, este brinde de caminharmos não juntos, mas ao menos na mesma direção. Assim, só nos cruzávamos vez por outra, quando passávamos um pelo outro.

No entanto, foi na brevidade desses encontros que nasceram estas palavras, ainda que desconexas, desordenadas. Porque as palavras nascem não quando o escritor se põe diante de uma folha em branco, mas sim quando o sentimento surge, lá atrás: repentino, puro, inocente. É ali que as palavras, feito um bebê recém-saído do ventre materno, gritam, no mais animalesco sinal de vida. Gritam e logo depois somem, de modo que tudo o que um escritor faz é tentar ingenuamente descrever aquele rastro deixado. Aquele sentimento que é poesia em estado bruto e, por isso mesmo, inenarrável.

Mas voltemos ao que interessa: foi ali que esta crônica nasceu.

Não sei seu nome, endereço ou telefone, mas, embora lamente muito não saber nada sobre ela, admito que há poesia nessa tal ignorância. É poético ter dela somente a graciosa lembraça de seu cabelo preto — escuro feito um véu enegrecido pela mais baça solidão e liso como um mar calmo sem ondas — a balançar, ritmado pela sua caminhada, num rabo de cavalo simples. Trajava uma camiseta amarela sem mangas, e seu rosto, esculpido, porcelanar, mostrou-me olhos pequenos — também negros, também belos.

Corro ali toda sexta-feira, porém nunca a tinha visto. Seguro que não, afinal, por mais avoado que seja — e sou — não teria deixado de notar sua singular beleza.

Devo, contudo, tomar nota de algo que talvez passe pela cabeça do estimado leitor. O que me tocou não foi aquela típica, natural atração física, sexual. Sensibilizei-me, sim, com o singelo balançar de seu cabelo; com o suor que lhe escorria pelo rosto talhado em traços finos, quase frágeis; com seu olhar miúdo sobre o qual não posso falar muito mais que isso, afinal, não houve como vê-lo melhor; ou talvez tenha me sensilizado sobretudo com as poucas madeixas que lhe pregavam sutilmente na testa, devido ao suor que ali gotejava. Foi isso, só isso e ao mesmo tempo tudo isso, o que me encantou.

Mas se ao mundo tudo descrito acima de nada vale (e de fato nada vale), a mim resta o silencioso, gratuito privilégio de tê-la em minha lembraça — tão linda, tão despretensiosamente elegante, poética, distante.


Frase do dia:
"Tem os que passam
e tudo se passa
como passos já passados

tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido

e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado."
Alice Ruiz

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