Da vida que cria faltas ou das faltas que criam a vida

Algumas poucas leituras teóricas sobre o assunto, outros tantos momentos observando as pessoas com que convivo e um olhar que, às vezes espinhosamente, forço que se volte pra dentro, pro eu: eis as razões do que me faz cada vez mais nos últimos tempos concluir – somos todos movidos pela falta. É a falta que nos move, a mim, a você, ao seu vizinho, ao motorista do ônibus.

Mas falta do quê, alguém há de perguntar. De dinheiro, de amor, de saúde, de paz? Ou, mais concretamente, de uma casa própria, de um emprego que satisfaça, de um celular de última geração? Sim, todas são possibilidades, mas não precisamos estabelecê-las nesse momento, aliás é até melhor que não as especifiquemos agora: são muitas as faltas, muitas as gentes e, em cada gente, quantas faltas? Não entremos nesse mérito, atentemos apenas para um fato: há uma casa vazia em cada um de nós.

E é exatamente essa lacuna que nos faz agir, mover, buscar: é assim que de repente vejo que a vida, sob determinado ponto de vista, nada mais é do que um espetáculo, como uma grande peça teatral. Sou um indivíduo, você outro, e cada um de nós, buscando sanar nossas faltas, dá vida a esse espetáculo. Ou, se preferir, cada um de nós, nesse intento de preencher a tal lacuna, ganha vida – faz a vida ganhar sentido. Dessa forma, é a falta que nos confere algum sentido à vida.

Mas... E quando sanamos a falta? Ora, nesse caso você estaria pensando nela como uma casa preenchida: se preciso de um determinado emprego e consigo o tal emprego, terei sanado uma falta. Surgirão outras, que novamente nos lançarão no palco da vida, que nos conferirão sentido à vida. Então insisto: pensemos nela como uma lacuna, como uma relação entre você e algo que lhe falta, palpável ou não, inteligível ou não, necessário ou não.

E isso me inquieta: se tenho tanto além do que julgo necessário, se sou tão mais privilegiado do que maior parte do mundo, se tenho, portanto, sanado tudo aquilo o que considero de fato necessário, por que ainda assim sou um sujeito em falta? Sou levado a concluir quase de imediato que isso é puro egoísmo, mesquinhez de minha parte. Mas pensar assim seria reduzir a questão, uma vez que, embora me sinta, sim, egoísta ao ver uma lacuna onde não deveria ver,  é através dela que me assinalo como sujeito do mundo, como sujeito que age no mundo.

Traço meia dúzia de objetivos, cumpro-os na esperança de poder me satisfazer, me contentar, me dizer basta. Não me realizo, não nos realizamos. Nunca? Acho que nunca. Quem sabe se naquele momento derradeiro em torno do qual criamos certo misticismo, falo do momento da morte, pois sim, alguns dizem que ali há um instante de plena lucidez, um vislumbre. Talvez valha acreditar: a realização plena embora súbita, surgindo como recompensa por uma vida de faltas. Ou mais: por uma vida que só é na medida em que falta.


Frase do dia:
"Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas."
Guimarães Rosa

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