Amor

Se você tivesse de escolher uma cena, apenas uma cena que expressasse a ideia que faz de amor - aliás, para não corrermos o risco de escorregar nesta palavra, tão usada e por isso mesmo esvaziada: se tivesse de escolher uma cena que concretizasse ao máximo o querer-bem-a-alguém, o querer-estar-bem-de-junto-de-alguém, o querer-que-alguém-seja-feliz, que quadro criaria?

Nos últimos tempos essa ideia ficou como que me circundando, me perscrutando, esperando ser atendido no consultório médico e lá estava eu, que imagem traduziria esse sentimento? Professor discursando em sala e eu, que cena, que cena, que cena?

Eis que a resposta, a imagem - a qual, como certa vez disse Murilo Mendes em ensinamento a João Cabral de Melo Neto, é mais importante que a ideia, daí talvez minha fixação em encontrar a tal cena - me veio exatamente de quem já havia despertado a minha procura.

Ela dormia. Creio que há não muito tempo, mas tempo já suficiente para parecer esquecida do mundo, dado o quase-sorriso (ou isso já foi minha subjetividade criando uma realidade?, creio que não) que lhe nascia no rosto. Não sei em que pensava ou com que sonhava, se é que o fazia, não vou fabular a respeito. Tudo o que aqui afirmo é o que ali percebi: que o amor há, essa fagulha de tempo em que o mundo nos parece tão bonito e equilibrado, eterno, enfim.

Talvez por estares de certa maneira fora do mundo, talvez por eu poder te mirar sem que tu me visses te vendo (o que nesse caso te levaria a crer que eu queria algo de ti, quando na verdade tudo o que eu queria era te ver...), talvez por pareceres sorrir, talvez por eu não ter ideia daquilo em que pensavas e portanto naquele momento não te conhecer, talvez, talvez, talvez - o certo é que ali me dei conta. Da imagem que buscava? Sim, também da imagem, mas, sobretudo: que o amor há, mais nada.

(À Jessica)


"Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente - o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura."
Guimarães Rosa

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