Alma desanuviada


Adentrou lentamente o mar. Antes disso, saiu da sombra da barraca em que estava comodamente sentado; tirou a camisa de algodão macia, recém-lavada; jogou-a sobre a mesa onde já estavam outros pertences; deu um último gole no copo de cerveja que estava por menos da metade e até um pouco quente; engoliu satisfeito; e partiu.

Caminhou descansadamente em direção ao oceano, mostrando suas costas nuas e excessivamente brancas, num claro sinal de que aquele trinômio praia, sol e mar era apenas uma eventualidade em sua dele vida.

Trespassou umas quantas pequenas ondas que lhe beijavam os pés, e pareceu ligeiramente incomodado com a frieza da água, que lhe batia nas canelas e lhe respingava no corpo, fazendo-o até pensar em não mais prosseguir com aquela bobagem; melhor teria sido ficar sentado na cadeira, à sombra, bebericando e sentindo a vida massageando-lhe os ombros. Mas agora era tarde, já estava com a água a bater nos joelhos, e isso lhe fez pensar subitamente que seria por demais ridículo voltar dali pra trás – já não era nenhum menino.

Assim, invadido pela certeza de que era homem feito e maduro, desses que não se desencorajam com pouco, num ato involuntário enrijeceu as pernas e passou a caminhar firme, obstinado, fingindo-se alheio ao toque da água fria no seu corpo enxuto.

Com a água à altura das coxas, veio vindo uma onda maior, e ele não titubeou: preparou-se, respirou o ar salgado e agradável que lhe circundava e, no momento exato, mergulhou de corpo inteiro, saindo do outro lado – vitorioso, forte como um touro e com a alma efemeramente despoluída.

Sentiu-se só no meio do oceano, o que lhe pareceu estranhamente agradável. Olhou pro céu e viu umas três ou quatro nuvens, e acima delas um céu azul, muito azul. Então, num movimento harmonioso tirou os pés do chão e ficou com o corpo rente, deitado, boiando com as costas na água. Pouco depois, virou-se e submergiu o corpo todo, desaparecendo por alguns segundos da superfície.

Mais uma onda, essa um pouco menor, e dessa vez ele escolheu não mergulhar, mas acompanhar o movimento, dançar a dança que ela lhe propunha. Pois assim o fez: na hora certa, saltou levemente, e então sentiu seu corpo com lentidão sendo jogado um pouco acima da superfície, para em seguida, cumprido o balanço esperado, colocá-lo uma vez mais com os pés no chão.

Olhou novamente pro alto, e percebeu que as nuvens haviam se dissipado. Lembrou-se da vida, lembrou-se da morte e sentiu sua alma, quem sabe como um espelho do céu, momentaneamente desanuviada.


Frase do dia:
"A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino prá lá ..."
Chico Buarque

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