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Mostrando postagens de janeiro, 2011

Feixe de luz

Domingo - último dia da semana, que na verdade dizem ser o primeiro - tenho conseguido a duras penas manter o hábito de escrever. Sentar e escrever, em algum momento da jornada. É sentar, ligar o computador, abrir a janela (redigir com calor não dá) e esperar vir a ideia. Esperar vir a ideia, esperar vir a ideia... E é aí que lembro: a ideia não vem; é você quem vai; afinal de contas, como diria o velho gajo Saramago, "tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas." O texto, portanto, o tema da crônica, está sempre lá, pra'lém da janela; o negócio é só conseguir capturá-lo e traduzi-lo em meia dúzia de palavras. É essa, somente essa, a missão de quem se mete a escrever, pois o mundo, repito, está o tempo inteiro, em toda parte, oferecendo as crônicas mais lindas, mais líricas, mais humanas; está tudo aí, de bandeja; falta apenas quem as traduza. A crônica está no choro inocente, verdadeiro - e por isso singular - da criança que pede no shopping

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Sossego da madrugada, Minh'alma desperta, ardente Fala algo que não entendo Me inquieto, incompetente Sinto o vento da janela Perscruto uma foto d'outrora Na qual já me desconheço Estranho espelho de um tempo que me deixou, foi-se embora Mas uma foto não é isso mesmo, passado tolo que fomos? A foto se descolore É a cor fugindo ao papel O que passou é tão disforme! Frase do dia: "É segundo por segundo Que vai o tempo medindo Todas as coisas do mundo Num só tic-tac, em suma, Há tanta monotonia Que até a felicidade, Como goteira num balde Cansa, aborrece, enfastia... E a própria dor – quem diria? – A própria dor acostuma. E vão se revezando, assim, Dia e noite, sol e bruma... E isto afinal não cansa? Já não há gosto e desgosto Quando é prevista a mudança. Ai que vida! Ainda bem que tudo acaba... Ai que vida tão comprida... Se não houvesse morte, Maria, Eu me matava!" Mário Quintana

Felizes

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Haverá um dia, sim, há de haver esse dia, em que ainda seremos felizes, inteiramente felizes; mas não felizes assim, como você está a imaginar; seremos felizes de uma forma tão feliz, mas tão feliz, que ainda está pra ser criado o vocábulo resumidor de tanta felicidade. Não, não; na verdade seremos tão felizes que nem haverá palavra que nos chegue (pra que palavras, se já seremos felizes?); dormiremos tarde da noite (porque à noite é que o homem se ergue, se infinta; ao que de dia, se apequena, se avilta); todo mundo terá uma cama quente numa noite fria; terá um lençol macio tocando uma pele sempre limpa; toda a gente será de mente boa e branda e branca, onde só passearão os sonhos mais utópicos, que aliás já serão a mais concreta (e feliz!) realidade; todos terão um café feito na hora, bem quente; comerão um arroz com feijão bem temperados, igualmente quentes; todos, ao menos um dia na vida, passearão na praia, pisando, pé descalço, a areia úmida da onda que vai e vem, deixando, carin

O flanelinha

Um dia desses, numa sexta-feira - sexta? acho que era -, tarde da noite, fiquei vendo da janela da cozinha uma festa que estava acontecendo no prédio aqui ao lado. Som alto, banda ao vivo, acho que era aniversário de alguém. O clima, visto dessa bendita janela, parecia bom, lá nesse prédio; tão convidativo que quase peguei uma cerveja na geladeira. Reparei, no entanto, que poucos se arriscavam a ir dançar; a maioria das pessoas permaneciam sentadas nas mesas, provavelmente tímidas ainda, e digo “ainda” porque sem dúvida muitos estavam a beber com fingida pressa algo que lhes expulsasse a tal timidez, de modo que logo, logo estivessem desinibidos - ou mamados, bêbados, calibrados, melados, embriagados, como queiram - a ponto de se levantarem e irem dançar um pouco. Mas até aquele momento, como disse, somente umas duas ou três pessoas bailaban , e discretas; o restante só marcava o compasso da música com o pé batendo no chão, embora isso eu afirme por mera dedução da cena, já que obviam

Ouvir

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Não sei se ando (ainda mais) chato ou se faz sentido minha crítica, mas tem me saltado aos olhos - ou melhor, aos ouvidos – como as pessoas de um modo geral não escutam mais. Parece loucura, eu sei, mas tenho visto – pra não dizer descoberto – cada vez menos pessoas que me parecem conseguir ouvir o que lhes é dito. Mas ouvir mesmo, de fato. Porque, pra maioria do povo, o que a gente diz (literalmente) entra por um ouvido e sai pelo outro. Esse verbo – tão básico, tão simples, meu Deus! – vem perdendo seu real significado nos dias em que vivemos. A sensibilidade do ato de escutar me parece quase em extinção. Essa ação - que, por incrível que pareça, não exija mais do que a mudez e a atenção ao que é transmitido – evapora, se volatiliza dentre as capacidades naturais do ser humano. Parece exagero, mas não é. O povo só quer falar, falar e falar. Cada um quer contar sua história, mas ninguém quer ter a paciência necessária pra escutar a do outro. As pessoas não conseguem ouvir um relato se

Competência

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Tem gente, como outro dia escrevi (mais precisamente em dezembro do ano passado), que adora criticar o Brasil. Bom é lá fora. Europa, Estados Unidos. Lá tudo funciona; é rua limpa, meu amigo. Você pode caminhar tranquilo, sem se preocupar com o roubo de seu Rolex ou de seu celular de última geração. Lá a teoria é linda, e a prática acontece; o que se paga de imposto lhe é restituído - quase como no balançar de uma varinha de condão - em hospitais dignos, escolas de qualidade e mais uma infinidade de coisas que aqui por nossa Terra Papagalli passam longe, bem longe. Pois é. Mas tem história, meu senhor, que você seguramente jamais vai presenciar em Paris, Estocolmo, Moscou, Praga, Washington, etc. E um desses relatos eu ouvi hoje, contado por um comentarista de um programa esportivo a que eu estava assistindo. Disse ele que vinha num ônibus - completamente lotado; gente por cima de gente; malandro se aproveitando daquele empurra-empurra pra tentar meter a mão na sua carteira; um

Vida

Nesta semana, no que deveria ser mais um insosso dia de aula na faculdade, fiquei sabendo de algo que me pegou absolutamente desprevenido. Um aluno do curso se suicidou. Como? Não sei. Por quê? Não sei. Não sei e nem fui atrás de saber, pois, como diria Saramago, "(...) morreu, simplesmente, não importa de quê, perguntar de quê morreu alguém é estúpido, com o tempo a causa esquece, só uma palavra fica, Morreu (...)" Mas antes que, hipocritamente, possa parecer que vim aqui chorar a perda de um colega, de uma ótima pessoa que deixou o mundo, tecendo aqueles conhecidos comentários post mortem , deixemos bem claro: esse não é o tema da crônica. Ele não era meu colega, nem seu nome eu sabia. Só o conhecia de vista, quando nos cruzávamos pelos corredores, de modo que essas tradicionais lágrimas não são minhas, não me pertencem. O que me tocou realmente foi o fato de um cara de mais ou menos vinte e dois anos, mesmo com angústias - será que tão diferentes das minhas? -, ter posto

Céu e mar

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Não gosto de, nestas crônicas, falar sobre os livros que venho lendo, como se quisesse dar uma de crítico literário ou algo do tipo. Julgar - independentemente do que seja ou de quem se trate - não é minha praia. Mas o livro que li - ou melhor, devorei - de ontem pra hoje mexeu demais comigo. Não deu pra não falar sobre ele quando aqui me sentei pra escrever. Poucas vezes na vida - se é que alguma vez isso aconteceu - tive a sensação de entender completamente o que o que o autor estava dizendo, o que estava pensando, aquilo que estava de fato vivendo (já que se tratava de um relato absolutamente verdadeiro: a descrição de uma inusitada viagem realizada por ele). Senti-me como nunca entranhado nos pensamentos descritos por alguém. A bem da verdade, se for olhar por um prisma mais racional, acho que o livro (que é muito bom), nem merece tantos e rasgados elogios; o que me impressionou mesmo foi como tive a sorte de lê-lo no momento de minha vida em que mais poderia compreendê-lo, em que