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Mostrando postagens de junho, 2011

Alma desanuviada

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Adentrou lentamente o mar. Antes disso, saiu da sombra da barraca em que estava comodamente sentado; tirou a camisa de algodão macia, recém-lavada; jogou-a sobre a mesa onde já estavam outros pertences; deu um último gole no copo de cerveja que estava por menos da metade e até um pouco quente; engoliu satisfeito; e partiu. Caminhou descansadamente em direção ao oceano, mostrando suas costas nuas e excessivamente brancas, num claro sinal de que aquele trinômio praia, sol e mar era apenas uma eventualidade em sua dele vida. Trespassou umas quantas pequenas ondas que lhe beijavam os pés, e pareceu ligeiramente incomodado com a frieza da água, que lhe batia nas canelas e lhe respingava no corpo, fazendo-o até pensar em não mais prosseguir com aquela bobagem; melhor teria sido ficar sentado na cadeira, à sombra, bebericando e sentindo a vida massageando-lhe os ombros. Mas agora era tarde, já estava com a água a bater nos joelhos, e isso lhe fez pensar subitamente que seria por demais ridícu

Um papel

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Pra mim está muito claro, e não tem quem me faça mudar de ideia. A população está dividida em dois grandes grupos: o grupo dos que abaixam o vidro do carro pra pegar aquele inútil panfleto de propaganda que lhe é oferecido quando o sinal está fechado; e o grupo dos que não abaixam o vidro do carro pra pegar aquele inútil panfleto de propaganda que lhe é oferecido quando o sinal está fechado. É isso aí mesmo. As pessoas começam a se apartar ideologicamente a partir desse momento, dessa concepção, dessa atitude. Se o cidadão é politicamente de esquerda ou de direita; se prefere doce a salgado; se gosta mais de praia que de serra; balada ou barzinho; Coca-Cola ou Guaraná – todas essas são classificações que vêm depois da divisão primeira e elementar: se você abaixa ou não abaixa o vidro do carro quando uma pessoa de bem - que está tostando num impiedoso sol fortalezense; que está suando, literalmente suando pra se sustentar; e que está com uma pilha de papel que cansa só de olhar - passa

"É a Teresinha..."

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Atendi o celular acreditando que iria ouvir do outro lado da linha a voz da Bernadete; afinal, o ser humano moderno jamais pode duvidar daquilo que a tecnologia lhe afirma, e eu, como obediente ser humano que sou, não ousei questionar esse senhor supremo que tudo sabe – o celular –, pois sem titubear ele estava me informando no visor do aparelho o nome da pessoa que comigo queria falar – Berna. No entanto, me assustei quase imperceptivelmente quando, do outro lado da linha, surgiu uma voz que não era a que me prometia o celular; era, sim, uma voz mais cansada porém auscultadamente satisfeita por estar ali, se fazendo presente; uma voz mais frágil, mais arrastada porém muito segura de si; uma voz assim, que misturava fragilidade e segurança tal qual uma velha árvore que no outono vê caírem todas as suas folhas, mas se mantém de pé, firme, impávida. Logo que atendi, a primeira coisa que ela me disse não foi "Alô", "Olá" ou mesmo "Não, não é a Bernadete"

Cai a noite

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E cai a noite mais uma vez; escura como há sempre de ser, mas hoje sem lua, sem estrelas – feito meu coração, que manda apagar todas as luzes só pra ninguém vê-lo sofrer. Fosse eu um poeta, agora poetizaria; fosse músico, comporia; fosse apaixonado, amaria; fosse feliz, sorriria. Mas sou só um enfastiado cronista que esbarra sempre no mesmo assunto: eu – este tema sem sal, sem fim. Levanto desta cadeira que me acomoda e me dirijo à cozinha em busca de um copo d’água. Casa completamente vazia, inerte, indiferente. Caminho seguro, passos firmes, cabeça erguida, como se, ao invés do copo d’água, estivesse caminhando pra receber um troféu importante num evento pomposo, perante uma plateia elegante e bem comportada. Com o copo erguido, no entanto, em lugar da salva de palmas, me satisfaço com o prazer da água gelada escorrendo-me garganta abaixo, num felicíssimo ainda que insignificante momento da vida. Na volta, não me sento na cadeira que me espera, e tampouco encaro a folha em branco que

Um mundo, talvez, equivocado

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Sinceramente. Não sei se o mundo está de pernas pro ar ou se eu é que não consigo me adaptar, não consigo acompanhar a geração de que faço parte. Pipocam a todo momento frases e livros e palestras nos dizendo que devemos sonhar mais, sonhar grande, porque quem sonha pequeno é limitado. Nas propagandas, nos shoppings , nas vitrines, nos carros, na vida: não basta o que se tem, não se conforta com o que se alcança. Não se pode aposentar e deixar fluir (na verdade quem deve se aposentar e desaparecer em breve é este verbo: fluir ) um objetivo alcançado; deve-se, sim, renová-lo, expandi-lo. É isso o que nos empurram goela abaixo, disfarçada e eficientemente. Porque o homem tem de querer sempre mais; cada um de nós tem de ser sempre o melhor e mais bem sucedido e nunca deixar de sonhar; é silenciosamente proibido deixar de sonhar, pois aquele que deixa de fazê-lo perde o encanto, perde a cor, perde a razão de viver. Há carros constantemente mais luxuosos e numerosos e cheios de opcio

Minha companheira

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Acho que estou criando uma aranha. Digo acho porque não tenho certeza se devo definir nossa relação, minha em relação à aranha, como de criação; afinal de contas, não a crio como se cria um cachorro ou um gato – ainda estou estudando se nosso grau de intimidade já exige de mim tamanho zelo em relação a ela. Ainda não a nomeei, de modo que peço desde já desculpas pela repetição dos pronomes ela que aparecerão nesta crônica. Vive aqui pertinho de onde estou a escrever, o aracnídeo de que falo. Na verdade me sinto na obrigação de dizer que me assusta, me exaspera o sentido que transmite essa palavra – aracnídeo. Tanto que chego até a olhar para os lados, subitamente amedrontado, quando lembro que estou dividindo meu espaço com um bicho classificado como aracnídeo , o qual, com um nome desses, sem dúvida alguma pode a qualquer momento se aproximar sorrateiramente de mim e me picar o corpo indefeso, injetando-me todo o seu poderoso e letal veneno, levando à morte este solitário cronista.