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Mostrando postagens de abril, 2011

À espera pela chamada

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Nessa última quarta-feira à noite, quando entrei na sala de aula, atrasado que estava, sentei num dos poucos lugares vazios que ainda havia. Tudo igual, c'est la même chose , não fosse uma criança sentada exata e coincidentemente bem à minha frente. Não sou muito bom neste tipo de estimativa, mas acho que ela tinha uns sete anos, não mais que isso. Devia ser filha de algum aluno que nesse dia não pôde deixá-la com outra pessoa, trazendo-a, pois, para assistir a uma - não só para a criança - fastidiosa aula de Administração Financeira e Orçamentária. Pelo visto, o papo da professora sobre capital de giro, passivo não-circulante, ciclo de caixa e afins não despertou muito a curiosidade da pequena (nem a minha, aliás). Ela estava mesmo era concentrada num desenho bem bonito, colorido, produção toda dela, feito numa folha de papel ofício que a mãe ou o pai certamente já havia lhe entregue, como forma de manter quieta a criança durante mais de uma hora; tarefa difícil mas que fun

Da noite

No calar da noite, O doer da alma Que pulsa, inaudível Da vida, algumas lembranças Da morte, a esperança: tomara chegue Se não o fim, ao menos a luz De um novo dia

Meu rastro no mundo

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Estava a nossa família reunida nessa semana santa - fato raro, já que minha irmã mora em outra cidade, e meu irmão, embora viva aqui em Fortaleza, parece, de tanta notícia que dele temos, viver do Amapá pra lá - quando a primogênita de nós três, a Mariana, constatou em tom de lamentação: "Poxa, a gente não tirou nenhuma foto ainda; todo mundo junto e nenhuma foto, né?" Eu, que conheço minha irmã - com o perdão do pleonasmo - desde que nasci, sabia que ela complementaria a constatação com uma bela de uma explicação. Assim, concordei só com um meneio de cabeça, deixando o campo livre pra que ela chutasse lá no ângulo, me dando o tema desta crônica: "Porque eu acho foto um negócio superimportante. Têm que ter umas fotos pra, depois que a gente morrer, mostrar pro povo quem a gente era." Eu não disse na hora porque a ideia não estava tão clara em minha cabeça - ou talvez não tenha dito só por preguiça de alongar a conversa, hipótese bastante plausível levando-se em cons

Uma tigresa de íris cor de mel

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Uma vez li em algum lugar (pra variar não lembro onde, e já nem me esforço na tentativa de recordar informações como essa; é a idade que chega; já estou conformado) a história de que em certa ocasião um jornalista perguntou a José Saramago por que ele sempre, ou quase sempre, punha em seus livros o personagem de um cachorro. Tive, então, duas surpresas: uma por eu - leitor atento que sou do Gajo - nunca ter reparado nesse curioso detalhe, o de que realmente ele costumava inserir em seus romances, lá pelas tantas, a figura de um cão, figura esta sempre tratada com muito esmero, profundidade, algumas vezes até prosseguindo na obra até seu desfecho; e outro sobressalto, este ainda maior, quando o português respondeu que sinceramente nunca havia feito isso conscientemente, mas que, pra responder a pergunta, ele achava que se devia ao fato de o cão representar a sensibilidade que não cabe numa figura humana (na verdade a explicação era bem mais bonita que essa, mas, como não a anotei, fique

Quebra-cabeça

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Já faz alguns anos, isto. Estava eu no aniversário de um amigo quando ele, que sempre gostou de discursar, pediu a palavra quando todos já estavam de pé, prontos para o protocolar e, cá pra nós, insosso canto de parabéns presente em qualquer festa desse tipo. Silêncio controlado, ele começou agradecendo pela presença de todos e dizendo essas coisas superficiais, de praxe - ainda que eventualmente sinceras. Achando que o discurso ia seguir por essa linha, me desliguei um pouco - um pouco não, muito - de suas palavras e fiquei lá, olhando pra ele mas com o pensamento longe, bem longe. Foi então que, brilhantemente, ele juntou uma meia dúzia de palavras que me atraíram novamente a atenção: "Pode ser que daqui a 50 anos eu não lembre sequer o nome de vocês, mas queria dizer que, ainda que isso aconteça, vocês estarão presentes em cada ato, em cada atitude que eu tome, em cada pedacinho da minha vida" Poxa, tive vontade de, naquele momento, puxar uma salva de palmas, que nem a gen

O sintoma da idade

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Envelhecer é a coisa mais natural que existe, isso todo o mundo sabe. Agora, mais interessante que chegar à chamada terceira idade, é você parar pra pensar na vasta quantidade de sintomas que acusam essa, digamos, excessiva maturidade, se me permitem o eufemismo. Já ouvi gente dizer que o nego (pronome que, aliás, deveria constar em todos as nossas gramáticas, pois não se trata de algo análogo à terceira pessoa do singular ele ; trata-se, admitam ou não esses malditos estudiosos da Língua, da quarta pessoa do singular: o nego , ou simplesmente nego ) tá ficando velho quando começa a ter que fazer mais revisão que o carro que possui. Sintoma válido, mas não determinante no diagnóstico da avançada idade. Também já escutei o chamado sintoma das velinhas do bolo, segundo o qual o camarada entra mesmo pro time da senilidade é quando passa a gastar mais dinheiro com as velas da torta de aniversário - uma pra cada ano de vida - do que com a torta propriamente dita. Argumento igualmente aceito

Um amor

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Ela é linda. Excessiva, encantadora, embasbacadoramente linda. E estuda comigo. Na verdade faz só algumas disciplinas, e nem seu nome eu sei. (Tá, até admito que sei seu nome, mas não vou dizer; perderia toda a graça). Quando ela entra na sala, já estou lá no meu lugarzinho, discreto, no fundo, completamente imiscuído na leitura de algum livro. Ainda assim, reparo, com o poder da minha visão periférica - bendito seja o cara que inventou essa tal de visão periférica -, que ela vem chegando . Parece até o clipe da música do Jorge Ben Jor: "Ela vem chegando/ Ela vem chegando/ E eu feliz vou esperando (...)" Salve Jorge. Salve ela, que senta um pouco à minha frente, quase sempre no mesmo lugar. Começa a aula, e eu por vezes me vejo assim, abobalhado, hipnotizado com toda aquela beleza que, simbolicamente, está de costas pra mim. Indiferente. A sala é quente - ou melhor, a cidade é quente -, e talvez por isso ela recolha seu lindo cabelo preto - bem preto, e liso como seda