Meu rastro no mundo


Estava a nossa família reunida nessa semana santa - fato raro, já que minha irmã mora em outra cidade, e meu irmão, embora viva aqui em Fortaleza, parece, de tanta notícia que dele temos, viver do Amapá pra lá - quando a primogênita de nós três, a Mariana, constatou em tom de lamentação: "Poxa, a gente não tirou nenhuma foto ainda; todo mundo junto e nenhuma foto, né?"

Eu, que conheço minha irmã - com o perdão do pleonasmo - desde que nasci, sabia que ela complementaria a constatação com uma bela de uma explicação. Assim, concordei só com um meneio de cabeça, deixando o campo livre pra que ela chutasse lá no ângulo, me dando o tema desta crônica: "Porque eu acho foto um negócio superimportante. Têm que ter umas fotos pra, depois que a gente morrer, mostrar pro povo quem a gente era."

Eu não disse na hora porque a ideia não estava tão clara em minha cabeça - ou talvez não tenha dito só por preguiça de alongar a conversa, hipótese bastante plausível levando-se em consideração a atividade a que me entreguei de corpo e alma nessa semana santa: o ócio -, mas agora falo: discordo. Discordo porque acho que uma fotografia minha, por exemplo, não vai dizer, não vai significar rigorosamente nada para um eventual bisneto meu que, não chegando a me conhecer, me veja somente num papel (ou na tela de um computador, se é que ainda vai existir computador daqui pra lá). E digo isso porque um dia desses estive exatamente na pele desse hipotético bisneto. Estávamos na casa de minha avó, e a Mari começou a ver várias fotos antigas; via e perguntava quem era aquele povo todo. Eram parentes distantes, nosso avô, nosso bisavô e por aí ia. Eu, que estava ali do lado, via aquela gente e, através da foto, tentava me conectar a eles: saber quem eram de fato, saber do que gostavam, como viviam, se eram felizes, se eram tristes, enfim. Tentava, tentava... e não conseguia. Era uma foto, seulement une photo, que não me dizia infelizmente (quase) nada a respeito das vidas ali enquadradas.

E é por isso, essencialmente por isso, que escrevo: pra não morrer na estaticidade de um retrato, na mudez de um sorriso estampado num papel, na limitação de um olhar que mira um diafragma como se o tal diafragma tivesse, uns cem anos mais tarde, a utópica capacidade de contar a história de uma vida toda, todinha, utilizando-se somente da fotografia que um dia, por acaso, me enquadrou. Escrevo porque tenho medo. Medo de ver minha vida, minha história - ainda que insignificantes - completamente esquecidas, soterradas pelas gerações que virão. Na verdade, sei que minha história um dia se perderá na vastidão do tempo - afinal de contas, não marcarei época como o cara que descobriu a cura do câncer ou feitos parecidos -, mas o que me amedronta mesmo é morrer sem deixar um rastro sequer um pouco mais duradouro. Sem deixar algo que fale um pouco mais que um papel retangular com minha imagem em tamanho 10 x 15. Junto essas meias dúzias de palavras como se assim, a cada crônica, eu fosse produzindo o meu retrato mais profundo, transparente, verdadeiro; um retrato que grite algo sincero sobre mim.

Quantas vidas (certamente interessantíssimas) dos séculos passados são hoje anônimas? Quantos sorrisos deixaram de ser descritos? Quantos amores infinitos em vida caíram na finitude, no anonimato depois da morte? E quantos desamores deixaram de ser sofridos, expressados, vazados, morrendo mudos e angustiados? Isso me entristece, mas me motiva a escrever: é a única pegada que vou deixar nesta terra, neste mundo que tudo devora.


Frase do dia:
"Intuiu que escrever uma coisa significa possuí-la (...). Pensou em uma centena de páginas lotadas de palavras e sentiu que o mundo o assustava menos."
Alessandro Baricco

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