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Mostrando postagens de 2011

Três ilógicos algarismos

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Sabe quando você está olhando o que está ao seu redor da forma mais despretensiosa possível, sem esperar que nada de estranho, de incomum possa lhe atrair a visão naquele ambiente – e de repente é exatamente isso o que ocorre? Sua cabeça (e por consequência seu olhar) já tinha até mudado a direção, mas subitamente você tem de voltar os olhos pra alguma coisa que lhe pareceu anormal, só pra se certificar de que não está enlouquecendo, sabe como é? Pois foi assim que isto aconteceu comigo. Acho que faz uma semana: meu sobrinho e eu estávamos no shopping , onde eu tinha de ir pra comprar um presente, quando, já perto de irmos embora, passamos em frente a uma loja de roupa, uma dessas grifes caríssimas cujo nome só não vou citar pra não parecer que o negócio é pessoal. Na vitrine, estava o vestido, personagem principal desta crônica. Passei pela frente da loja a passos largos, mas ainda assim tive tempo de ver os três algarismos que, colocados discretamente na parte superior da vesti

"Cegos que, vendo, não veem"

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Sexta-feira passada, ao cair da noite e como de praxe, lá estava eu, correndo na praça perto aqui de casa. Enquanto ia me deixando levar por esse saudável exercício, passei a reparar nos infinitos carros que passavam pelas quatro movimentadas ruas que delimitam a tal praça, a qual tem formato retangular e ocupa uma quadra inteira. Observava não os modelos dos veículos, que pouco me interessam, mas sim um fato banal que de repente me assustou: praticamente todos os carros tinham seus vidros completamente escuros, negros como a noite que caía sem pedir licença. Assim, concluí como quem soma dois mais dois e descobre o resultado: criamos uma cidade em que, nesse trânsito caótico, as pessoas têm olhos mas já não veem. Uma cidade que em parte, ao menos no ilógico tráfego que enfrentamos diariamente, não se enxerga, afinal, não vê o outro. Nesse trânsito, de dentro dessas máquinas que imperam em nosso cenário urbanístico, vemos de tudo, exceto o que há de mais essencial e verdadeiro: o o

Saudade, feita de memória

Estava eu lendo uma crônica do ótimo escritor pernambucano Samarone Lima quando, em meio a tantas outras palavras que daquela vez excepcionalmente me passavam meio despercebidas, ele lançou esta frase – sutil, perfeita: "Toda saudade é feita de memória." Sim, claro que é, toda saudade é feita de memória. Mas as palavras são assim, às vezes o óbvio, desde que dito de forma sensível, de coração aberto, também se torna belo. Pois há simplicidade no belo, ou há beleza no simples, sei lá. O certo é que, depois que li essa frase, fui aos poucos me deixando invadir por um sentimento já conhecido – uma aprazível melancolia, um calmo e harmonioso distanciamento em relação ao tempo que chamamos presente. Como uma nuvem que vai passando sem pressa num lindo dia de sol, fui deixando ela me levar – ela, a saudade. Mas saudade de quê? Saudade do que vivi, do que fui, saudade de ter sido. Afinal, como certa vez, ainda que não exatamente com estas palavras, disse Caio Fernando Abreu, o

Ela, na lembrança

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Na mesma praça, de formato retangular e perto de minha casa, corríamos em direções contrárias — ela em sentido horário, e eu, anti-horário. Estávamos em direções opostas, e não poderia haver algo mais simbólico: nossas vidas, que nunca caminharam juntas, que nunca sequer se conheceram, que jamais se tangenciaram mundo afora, não dariam a mim, numa breve corrida, este brinde de caminharmos não juntos, mas ao menos na mesma direção. Assim, só nos cruzávamos vez por outra, quando passávamos um pelo outro. No entanto, foi na brevidade desses encontros que nasceram estas palavras, ainda que desconexas, desordenadas. Porque as palavras nascem não quando o escritor se põe diante de uma folha em branco, mas sim quando o sentimento surge, lá atrás: repentino, puro, inocente. É ali que as palavras, feito um bebê recém-saído do ventre materno, gritam, no mais animalesco sinal de vida. Gritam e logo depois somem, de modo que tudo o que um escritor faz é tentar ingenuamente descrever aquele ras

Mais conexão - consigo

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Facebook, Twitter, MSN, email , iPhone, iPod, iPad: você também não sente falta, às vezes, só às vezes, de um mundo menos conectado? Não vou discutir aqui os inúmeros benefícios que essas modernidades nos trouxeram, como a comunicação em tempo real e gratuita entre pessoas que vivem a milhares de quilômetros de distância, a incrível velocidade com que as notícias rodam o mundo, a facilidade pra se fazer uma pesquisa sobre qualquer tema ou mesmo a simplicidade que hoje existe pra se descobrir onde anda um velho amigo que desde a infância você não vê. Isso tudo (e muito mais) é absolutamente incrível, embasbacante, sensacional. Mas vez por outra, com certa raridade até, sinto falta de uma vida menos interligada, menos pública, menos... disponível , como diria o status das redes sociais. Porque estar só é, sim, um momento enriquecedor para o ser humano: é a hora de olhar pra si, de estar não sozinho, mas consigo. Estou lendo agora mais um livro do experiente navegador Am

Com palavras, não sei dizer

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26 letras e mais um punhado de sinais de pontuação: é esse todo o arsenal de que dispõe um escritor. Outro dia entrei numa livraria e quase infantilmente me vi surpreendido por essa conclusão – óbvia, tola, até. Todas aquelas centenas de livros devidamente enfileirados, organizados e catalogados nas mais diversas estantes nada mais continham do que isto: letras. 26 apáticas formas gráficas que, sozinhas, nada dizem. No entanto, é na frieza de um a , somada à gelidez de um m , de um o e de um r que o escritor encontra um caloroso vocábulo: amor . Porque, a bem da verdade, escrever é simplesmente essa capacidade de juntar: juntar letras que formam palavras, palavras que formam frases, frases que contam histórias. Se escrever é uma arte? Penso que sim. É inimaginável a distância que há entre a repentina, natural, veloz ação de pensar que brota em nossa mente a todo instante, e o ato de traduzir esse pensamento em palavras, a formidável capacidade de dar-lhe forma gráfica. Po

A quem precisa, feliz natal

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É incrível, também acho, mas ele já está aí de novo. O natal, quem mais seria? Lembro com perfeição do último dia 24 de dezembro, de modo que admitir que de lá pra cá já se passou quase um ano, putz, faz a gente sentir esse tal de tempo pesando sobre as costas. Até poderia, mas não vou falar de como, nessa época, parte da cidade fica mais bonita, decorada, iluminada. Ou de como algumas pessoas, unicamente nesse período, decidem ser mais gentis, mostrar seu lado humano, aquele ficou enfiado no guarda-roupa o restante da temporada. Até acho bacana esse tal espírito natalino, mas não consigo deixar de lamentar que a data tenha, como tantas outras, se transformado em mais um momento pelo qual o comércio espera lambendo os beiços, mais um período em que as pessoas saem de casa – e compram, compram e compram. E tem mais: os grandes meios de comunicação, que poderiam variar um pouco o tema das reportagens natalinas e dar uma outra abordagem à data, ano após ano insistem naquela repeti

Ainda há de haver

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Confesso meu pessimismo em relação ao futuro da humanidade. Sinceramente, tenho me tornado cada vez mais cético, descrente quando ouço alguns dados nos dizendo, por exemplo, que a soma do PIB (produto interno bruto) dos 48 países menos desenvolvidos, com seus 600 milhões de habitantes, não chega à renda das três pessoas mais ricas do planeta. Ou quando ouço que, nos países em via (que via?) de desenvolvimento, mais de um bilhão de pessoas carecem de uma habitação adequada.  Ou ainda quando passo a saber que... Não, hoje vou parar por aqui, que o tema da crônica não é esse, afinal. Desta vez o que quero dizer é que, apesar de todo esse sombrio, sórdido cenário em que nos encontramos, aqui acolá tenho a felicidade de conhecer alguém que me reacende a chama da esperança, pois, sim, vendo a vida destas pessoas, não há como não ver uma luz – frágil, distante – no fim do túnel. Seu nome é Carlos, e ontem ele veio aqui em casa pra fazer uns reparos desses de que toda residência pr

Sonhar pequeno também vale

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Qual o seu sonho? O que te motiva a continuar aí, levantando diariamente da cama, indo trabalhar, estudar, pegar o ônibus, levar o carro pra consertar, fazer ligações, passar emails , rir, chorar, ter saudade, conversar com um velho amigo, se apaixonar... Pare e pense: o que está por trás disso, qual o combustível primeiro, essencial, que alimenta essa irrefreável locomotiva que é a sua vida? Se você acha que vou falar da importância de se ter um sonho grandioso pra motivar a sua existência, e da necessidade de se lutar por ele até conquistar o sucesso e o reconhecimento, a ponto de não ser só mais um neste mundo tão competitivo – lamento desapontar, mas não foi disso que vim tratar. Autoajuda nunca me apeteceu muito. Eu queria falar dos outros sonhos, os pequenos, miúdos, aqueles que, de tão singelos, nem como sonhos são classificados normalmente.  Às vezes sonho em ir à praia só pra pisar a areia e ficar ali, sentindo-a quente sob meus pés enquanto olho indeterminadam

O novo mundo

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Lá estávamos nós: Gabriel, Chico e eu conversando em mais uma tranquila volta da faculdade, ali pelas dez da noite. O papo, dessa vez, excepcionalmente, não era o sagrado futebol. Falávamos sobre esse consumismo voraz que move nossa sociedade. Essa necessidade de comprar: sorrateira, dissimulada mas eficaz, a qual o mundo consegue nos empurrar goela abaixo. Lembrávamos, num tom tão leve quanto o vento sereno que sempre invade o carro nesse trajeto que há quase cinco anos fazemos, a velocidade com que as coisas (computadores, celulares, carros, tudo) caem na obsolescência. Assim, pesquisando sobre o tema, descobri no Youtube um vídeo pra lá de interessante: A história das coisas . Talvez pelo fato de a produtora ser norte-americana, há um enfoque maior no padrão de consumo específico dos Estados Unidos – o que, obviamente, só torna os dados ainda mais alarmantes. Segure-se na cadeira, aí vão alguns desses números. Os Estados Unidos detêm mais ou menos 5% da população

Saúde

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Mais ou menos uma vez por mês vou a um hospital público aqui de Fortaleza buscar uns remédios que a prefeitura doa pra um tratamento de minha avó (pois é, nem tudo é um completo descuido no que diz respeito à saúde pública brasileira). Sempre que chego lá, invariavelmente, me deparo com o mesmo lamentável cenário: muita gente nos corredores, criança doente, idoso com jeito de quem já está com um pé na cova, adulto impaciente, doença pra dar e vender (pois é, nem tudo, tampouco, é uma maravilha na saúde pública de nosso país). Tenho a impressão de que, toda vez que entro ali, também fico um tantinho mais sem saúde. Ao sair de lá, no entanto, me lembro de que estou no caminho certo, aquele que provavelmente me manterá longe dos hospitais por muitos e muitos anos. Afinal, tento seguir o tratamento mais indicado pra quem não quer ser frequentador assíduo desses ambientes hospitalares: esporte, atividade física, corpo ativo. Bom, na verdade também não é pra tanto, não sou nenhum

Desarmados almados

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Por esses dias, estudando sobre o roteiro de uma viagem que pretendo fazer em breve, descobri um fato louvável, digno de nota: a Costa Rica não possui exército desde 1948. Foi o primeiro país a simplesmente optar por abrir mão de seu poder de fogo, decisão que a meu ver se torna ainda mais nobre se levarmos em consideração a época em que o país fez essa escolha, afinal, nesse período o mundo ainda colhia os cacos da Segunda Grande Guerra, e por isso praticamente todas as nações se mantinham de olhos abertos, tensas, assustadas quanto a futuros conflitos que poderiam acontecer. Assim, nessa época, enquanto boa parte dos Estados se dava conta da necessidade de se ter um exército poderoso e armas que impusessem respeito, a Costa Rica, um país pequenininho, do tamanho do Rio Grande do Norte, olhou pro planeta e falou com voz de quem é gigante: nós não queremos pactuar com esse ideal estúpido, ilógico, não queremos fomentar um mundo que tem medo das próprias armas – nós não temos mais

Únicos, pelo que colhemos

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Aqui acolá a gente ouve alguém lançando esta frase, muitas vezes na tentativa de levantar o astral de quem anda meio de baixa: você é único! Somos únicos, será? Concordo que cada um carrega consigo sua unicidade, ainda que reconhecer com precisão onde está a singularidade de alguém seja das tarefas mais difíceis. Pode estar no jeito tímido e verdadeiro de sorrir, no olhar brilhante que fala por si ou mesmo na fala engraçada e naturalmente acelerada que faz vibrar quem está por ali. O certo é que há, sim, em cada um, algo que é só seu – você é único. Mas o que poucas vezes paramos pra pensar é que nossa singularidade na verdade resulta de uma soma caótica, quase indecifrável de tudo aquilo que colhemos durante nossa vida. Porque sinceramente não acredito muito neste negócio de que já nascemos com aquilo que nos fará exclusivos. Não duvido do poder da genética, pelo contrário, tanto que vou aproveitar pra contar uma história recente, que muito me impressionou: um dos

Gente boa ≠ boa gente

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Certa vez me contaram esta história. Boba, sim, mas verdadeiríssima. "Uma pessoa gente boa nem sempre é uma pessoa boa gente." O gente boa pode ser – estou só dizendo que pode ser – aquele cara que aperta a sua mão e pergunta como você tá, mas que na verdade não quer saber se você vai mesmo bem. Já o boa gente pergunta se tá tudo bem e se certifica da resposta: olha no seu olho, procura a sinceridade no seu sorriso, pergunta se você resolveu aquele problema lá no trabalho, ou em casa, ou no relacionamento. Ele quer de fato saber "como vai você", já dizia Roberto Carlos. O gente boa eventualmente é aquele que entende de política e se revolta com a corrupção no País, mas sorri faceiro quando consegue subornar o guarda que lhe multaria ou quando se aproveita de uma brecha pra sonegar um impostozinho (pra que pagar imposto, se ninguém faz nada mesmo?). O boa gente pode até não andar com roupa de grife, mas faz de tudo pra pagar suas contas rigorosamente

Fábio

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Ele está sempre ali, porque ali é seu lugar: Silva Paulet quase esquina com Santos Dumont. Era sempre o mesmo problema: toda vez que eu tinha de ir ao banco, que fica exatamente nessa esquina citada no primeiro parágrafo, não havia lugar pra estacionar. Tinha de parar a várias quadras de distância ou desistir e ir a uma agência bem mais longe. Pois foi num desses dias, já há alguns anos, que ele apareceu em minha vida. Eu estava dirigindo devagar, à procura da bendita vaga, quando ele surgiu, agitadíssimo, erguendo os braços como se tivesse acabado de avistar uma tonelada de ouro maciço brotando daquele asfalto quente – mas só estava me avisando que achara um lugar onde eu parar. Desci do carro, cumprimentei-o brevemente e fui resolver sei lá o quê na agência. Ao voltar, perguntei se ele estava sempre por ali, ao que ele disse que todo dia, o dia todo. Dei-lhe uns trocados e me mandei. Nas duas ou três vezes seguintes em que fui ao banco (nessa época eu ia várias ve

Dia das crianças

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O dia das crianças tá chegando. Não que eu ache a data importante, claro que não. Vejo simplesmente como mais uma que o comércio criou pra gente ir lá e comprar, comprar e comprar – êta verbozinho pra não sair de moda. Mas dá pra aproveitar o 12 de outubro e fazer uma crônica. Um dia desses minha mãe disse que uma pessoa do trabalho dela estava juntando umas roupas pra fazer uma doação a alguma dessas louváveis instituições que ajudam crianças carentes. Minha mãe perguntou se servia roupa de adulto, ao que a sua colega respondeu que sim, claro que sim, afinal, filhos carentes quase sempre têm pais também carentes, que precisam igualmente de ajuda. Então aceitei prontamente o pedido da dona Zuleide e lá fui eu fazer uma limpa no meu guarda-roupa. Sou um cara extremamente apegado às coisas (o que não faz de mim uma pessoa consumista, são características bem distintas). Quero dizer apegado no sentido de que não gosto de me livrar de certos pertences: uma medalha ganha no ca

Sim, era ele

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Foi nessa semana que passou. Tinha de ir lá resolver um negócio de trabalho. Assim, manejando sem pressa, ali pelas dez da manhã em mais um belíssimo dia de sol em Fortaleza, tomei a Desembargador Moreira, avenida que me conduziria até lá – até a Beira-Mar. Num determinado ponto, então, já me aproximando do calçadão por que diariamente passam centenas de turistas, além de fortalezenses dispostos a uma saudável caminhada, avistei-o. Sim, era ele, não havia dúvidas. Fazia tempo que não o via, ou melhor, que não o via assim mais atentamente, sob um olhar mais abrandado. Estava lindo como sempre, mas me pareceu ainda mais gracioso, como uma mulher que, além de bela por natureza, faz questão de retocar sutilmente a maquiagem e de pôr um vestido discreto mas de cortes perfeitos a moldar-lhe o corpo, tornando sublime o que já bastava enquanto natural. Assim estava ele, nesse dia: se empavoando de toda a sua já costumeira beleza. Mas era verde ou azul? Impossível afirmar. Certa

Um senhorzinho

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Recentemente, o jogador de futebol Breno – bastante conhecido da torcida do São Paulo, clube pelo qual foi campeão brasileiro em 2007 –, que atualmente defende as cores do Bayern de Munique, foi preso na tal cidade alemã onde vive. Motivo: acusação de ter ateado, propositalmente, fogo em sua própria casa. O caso pode parecer pontual, banal: mais uma pessoa acusada de ter feito algo errado por aí e que por isso está sendo investigada (em tempo: mesmo com a investigação em fase inicial, portanto sem haver certeza se o caso foi acidental ou não, as autoridades alemãs preferiram manter o rapaz atrás das grades). Mas, como vinha dizendo, o caso não é tão pontual como parece, e por isso resolvi falar sobre ele. A história é a seguinte: o Breno foi lançado no time profissional do São Paulo em 2007, aos 18 anos. Surpreendentemente, porém, o menino ganhou a vaga de titular quase que da noite pro dia, fruto de sua qualidade inquestionável como jogador. Foi campeão brasileiro nesse an

Escrever

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Escrever. Escrevo porque não me suporto, não me comporto. As palavras vão se ajuntando, se amontoando dentro de mim até que vazam, transbordam – feito um balão, uma bexiga que vai sendo cheia de água e com isso vai crescendo, engordando, se avolumando até que, ploft – esparrama a água que continha. Mas pra mim é difícil, esse negócio de escrever. Dificílimo. Uma página em branco carrega consigo a maior das contradições: apavora mas incentiva, assusta mas afaga, desdenha mas motiva. Quem se mete a escrever logo descobre: aquilo que chamam inspiração é mais lenda que realidade, e imaginar alguém escrevendo com a leveza, com a fluidez de uma primavera parisiense me soa tão verossímil quanto a visita que o Papai Noel nos faz ano após ano. Acho inclusive que isso vale pra outros ramos da arte: pintura, música, cinema. Outro dia vi o Edu Lobo – no ótimo documentário "Uma noite em 67", aproveito pra deixar a dica – dizendo algo assim: "A gente sempre ouve históri

Homem cansado

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Dormiu cedo, mas acordou estranhamente cansado. As pernas não lhe doíam, nem os braços, nem nada. Era um homem muito saudável, ele mesmo o sabia muito bem. Porém, sentiu-se cansado, todo ele. Ficou ali pela cama um tempo, imóvel, a olhar o nada, esperando que aquilo se dissipasse. Devia ter dormido demais, certamente era isso. No entanto, foi-se sentindo mais e mais vencido, e subitamente lhe ocorreu uma vontade: não queria se levantar. Nunca mais. Foi ao banheiro, lavou o rosto e, num gesto mecânico e vazio, olhou-se no espelho: uma barba por fazer e uma vida tola por seguir – qual dos dois mais lhe desagradava? Passou o dia assim: escondendo-se, minguando-se, perecendo-se. Não reparou no belo dia de sol que fazia ou no céu todo azul, muito azul. Ou talvez tenha, sim, notado, mas seu olhar nada falou, nada transpareceu – era frio e negro como uma noite longínqua num deserto vazio. Seu corpo comeu, lavou-se, dormiu um tanto mais. Seu corpo. Pois sua mente era um quase n

Dia dos amantes

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Diariamente ouço por no máximo cinco minutos (o tempo que levo de casa ao trabalho) o comecinho de um programa de rádio pra lá de besta, em que o apresentador, nesse bate-papo inicial, diz, entre outras banalidades, o que se "comemora" no presente dia. Ontem, 22 de setembro, foi o dia dos amantes (bom, segundo informações do dito programa, também foi o dia da banana, mas sobre esta infelizmente não tenho muito o que discorrer). Assim que o apresentador citou a tal amável data, o seu auxiliar lançou uma pertinente pergunta: peraí, esse dia se refere a todos aqueles que se amam ou só àqueles que mantêm uma relação fora do casamento? Eles, que não sabiam a resposta, brincaram um pouco mais com a situação e logo mudaram de assunto, mas eu, que tampouco sei a quem o inventor dessa data quis se dirigir (se somente aos que gostam de pular a cerca ou se a todos que têm a quem amar), pensei: quer saber? Tomara que se refira ao dia dos amantes – no sentido mais malicioso d

A vida dos outros

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Quem não viu, veja. Mas veja mesmo, ligue logo pra locadora e pergunte se eles têm disponível. Porém, se não tiverem, não se desespere, minha tia-amiga Bernadete, que felizmente passou o fim de semana aqui em casa, trouxe clandestinamente uma versão pirata – de muito boa qualidade, impecável – do DVD, que eu, terminado o filme, corri pra também piratear (essa minha confissão constitui um crime? Já me coloca sob a mira da Polícia Federal? Se sim, defendo-me desde já: fiz isso unicamente em nome da arte, juro). Pois bem, como dizia, caso não encontre por aí, pode me pedir que eu também pirateio um pra você (e com essa afirmação, agravo em quantos anos minha pena? Pois me defendo uma vez mais: caso alguém me peça, farei isso gratuitamente, tudo em nome de um propósito humano e generoso – a divulgação da sétima arte, quase como um Robin Hood da pirataria cearense). Ah, sim, o nome do filme: A vida dos outros , um filme alemão de 2006. Mas deixemos as brincadeiras à parte – o fi

Suave, serena e solitária

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Num fim de tarde cinzento, uma ave – branca, era branca, a ave! – passa por minha janela e de imediato me conquista a atenção. Suave, serena e solitária – assim defini-la-ia. Voava pra lá e pra cá, despretensiosa, não sei a que distância da janela de meu apartamento, mas seguramente a uma distância nem tão grande a ponto de me fazer perdê-la de vista, nem tão pequena de modo que eu pudesse ver seus contornos mais detalhadamente. Um afastamento calculado, como o de um artista que precisa ser visto mas que ao mesmo tempo se mantém longe o suficiente para avisar: eu sou artista, você, espectador. Eu tinha de fazer umas duas ou três ligações a trabalho, tinha de ir ao banco sacar um dinheiro, tinha de ir resolver um probleminha que apareceu no carro, e além disso tenho de me preocupar com meu futuro, com meus desejos profissionais, estudar e trabalhar e nunca ficar pra trás, tenho de ser o melhor no que faço, não posso ser só mais um – é esse o ensinamento que o mundo nos dá

Serenidade, nada mais

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Felicidades, saúde, dinheiro, muitos anos de vida – são esses os votos que todos damos no dia em que um amigo, um parente, alguém de quem gostamos faz aniversário. Ok, todas essas coisas são mais que bem-vindas, mas acho que nos esquecemos de desejar aquilo de que o mundo mais carece, aquilo que mais nos falta, em especial nesta vida caótica que acabamos por criar: serenidade. Plenitude. Paz consigo mesmo. Porque felicidade, ao contrário do que somos levados a pensar, não diz respeito a carro do ano, apartamento de frente pro mar, cartão de crédito com um limite nas alturas ou jantares nos mais refinados restaurantes. Felicidade é se sentir pleno, sereno, satisfeito com os mais simples prazeres que a vida nos proporciona: a beleza de um dia de sol e de céu azul e aberto, uma praia num dia ensolarado, um arroz com feijão bem temperados, um copo d'água quando se está morrendo de sede, uma noite de sono bem dormida. Felicidade, essencialmente, é só isso, esqueça os dicioná

Numa foto antiga

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Outro dia peguei uma foto minha, ainda criança. Tivesse eu simplesmente visto o retrato e deixado-o logo de lado, nada me chamaria atenção, passaria por mim como mais uma foto antiga e fim de papo. Mas fiquei lá, olhando e olhando pra ela, tentando me reconhecer naquele menino mimado, chatíssimo – ainda que muito bonitinho e bom de bola, modéstia à parte. Quem era aquele menino? O que ele me dizia passados tantos anos? Existe ainda algo dele dentro de mim, ou todo ele evaporou feito um filete de água que pouco a pouco some de uma louça recém-lavada? Pra variar, assino embaixo do que diz o velho Saramago: "As velhas fotografias enganam muito, dão-nos a ilusão de estarmos vivos nelas, e não é certo, a pessoa para quem estamos a olhar já não existe, e ela, se pudesse ver-nos, não se reconheceria em nós."  Toque aqui, Saramago. Ver atentamente uma foto antiga, aliás, é um baita exercício de autoanálise: pensar no que você era naquele momento de sua vida, quais eram seus