"Cegos que, vendo, não veem"
Sexta-feira passada, ao cair da noite e como de praxe, lá estava eu, correndo na praça perto aqui de casa. Enquanto ia me deixando levar por esse saudável exercício, passei a reparar nos infinitos carros que passavam pelas quatro movimentadas ruas que delimitam a tal praça, a qual tem formato retangular e ocupa uma quadra inteira. Observava não os modelos dos veículos, que pouco me interessam, mas sim um fato banal que de repente me assustou: praticamente todos os carros tinham seus vidros completamente escuros, negros como a noite que caía sem pedir licença.
Assim, concluí como quem soma dois mais dois e descobre o resultado: criamos uma cidade em que, nesse trânsito caótico, as pessoas têm olhos mas já não veem. Uma cidade que em parte, ao menos no ilógico tráfego que enfrentamos diariamente, não se enxerga, afinal, não vê o outro. Nesse trânsito, de dentro dessas máquinas que imperam em nosso cenário urbanístico, vemos de tudo, exceto o que há de mais essencial e verdadeiro: o olhar das pessoas. Os vidros escuros que em nossos carros nos dão a frágil sensação de segurança são os mesmos que nos impedem de ver um sorriso no carro ao lado (ou que alguém nos veja sorrindo), que nos cegam enquanto alguém cantarola, feliz, uma música no volante vizinho ao nosso.
Vendo – ops, não vendo – tudo aquilo abalei-me ainda com o outro lado da moeda: o de, além não ver, não ser visto. Me lembrei do belíssimo livro Ensaio sobre a cegueira, do Saramago, e de uma personagem importante da obra, a única que continua a enxergar enquanto a cidade inteira é infectada pela tal cegueira. Num dado momento, essa mulher, cujo nome não recordo, fala que, embora não tenha perdido a faculdade de ver, ela também se sente mais cega. O motivo? Ninguém a enxerga mais. Assim, seu olhar perde parte do sentido, escurece de certa forma.
Claro que, de dentro dos automóveis, ainda se pode vislumbrar os pedestres ou os raros ciclistas, que infelizmente, devido à falta de segurança e de infra-estrutura para esses meios de locomoção, não são tão numerosos quanto poderiam ser. Mas, mesmo nesses casos, há de se lamentar que eles, por seu lado, normalmente não veem sequer o rosto de quem maneja os vários carros que os circundam. Caminham (ou pedalam) em meio a máquinas que parecem ter vida própria, se pararmos pra pensar.
É triste, mas como diria a mulher do médico – é assim mesmo que ela é denominada durante todo o Ensaio sobre a cegueira, e pesquisei no Deus Google essa informação –, no trânsito de nossa cidade, assim como no de tantas outras metrópoles brasileiras, criamos um lugar de cegos. E o que é mais alarmante: "Cegos que, vendo, não veem."
Frase do dia:
"O escritor está sempre escrevendo. Nisto consiste a graça de ser romancista: na torrente de palavras que borbulham constantemente em seu cérebro. Já redigi muitos parágrafos, inúmeras páginas, incontáveis artigos enquanto estou passeando com meus cachorros, por exemplo: na minha cabeça vou deslocando as vírgulas, trocando um verbo por outro, afinando um adjetivo. Muitas vezes escrevo mentalmente a frase perfeita e volta e meia, se não a anota a tempo, ela me escapa da memória. Resmunguei e me desesperei muitíssimas vezes tentando recuperar aquelas palavras exatas que por um momento iluminaram o interior da minha cabeça e depois tornaram a mergulhar na escuridão. As palavras são como peixes abissais que só nos mostram um brilho de escamas em meio às águas pretas. Se elas se soltarem do anzol, o mais provável é que você não consiga pescá-las de novo. São manhosas as palavras, e rebeldes, e fugidias. Não gostam de ser domesticadas. Domar uma palavra (transformá-la em clichê) é acabar com ela."
Rosa Montero
Assim, concluí como quem soma dois mais dois e descobre o resultado: criamos uma cidade em que, nesse trânsito caótico, as pessoas têm olhos mas já não veem. Uma cidade que em parte, ao menos no ilógico tráfego que enfrentamos diariamente, não se enxerga, afinal, não vê o outro. Nesse trânsito, de dentro dessas máquinas que imperam em nosso cenário urbanístico, vemos de tudo, exceto o que há de mais essencial e verdadeiro: o olhar das pessoas. Os vidros escuros que em nossos carros nos dão a frágil sensação de segurança são os mesmos que nos impedem de ver um sorriso no carro ao lado (ou que alguém nos veja sorrindo), que nos cegam enquanto alguém cantarola, feliz, uma música no volante vizinho ao nosso.
Vendo – ops, não vendo – tudo aquilo abalei-me ainda com o outro lado da moeda: o de, além não ver, não ser visto. Me lembrei do belíssimo livro Ensaio sobre a cegueira, do Saramago, e de uma personagem importante da obra, a única que continua a enxergar enquanto a cidade inteira é infectada pela tal cegueira. Num dado momento, essa mulher, cujo nome não recordo, fala que, embora não tenha perdido a faculdade de ver, ela também se sente mais cega. O motivo? Ninguém a enxerga mais. Assim, seu olhar perde parte do sentido, escurece de certa forma.
Claro que, de dentro dos automóveis, ainda se pode vislumbrar os pedestres ou os raros ciclistas, que infelizmente, devido à falta de segurança e de infra-estrutura para esses meios de locomoção, não são tão numerosos quanto poderiam ser. Mas, mesmo nesses casos, há de se lamentar que eles, por seu lado, normalmente não veem sequer o rosto de quem maneja os vários carros que os circundam. Caminham (ou pedalam) em meio a máquinas que parecem ter vida própria, se pararmos pra pensar.
É triste, mas como diria a mulher do médico – é assim mesmo que ela é denominada durante todo o Ensaio sobre a cegueira, e pesquisei no Deus Google essa informação –, no trânsito de nossa cidade, assim como no de tantas outras metrópoles brasileiras, criamos um lugar de cegos. E o que é mais alarmante: "Cegos que, vendo, não veem."
Frase do dia:
"O escritor está sempre escrevendo. Nisto consiste a graça de ser romancista: na torrente de palavras que borbulham constantemente em seu cérebro. Já redigi muitos parágrafos, inúmeras páginas, incontáveis artigos enquanto estou passeando com meus cachorros, por exemplo: na minha cabeça vou deslocando as vírgulas, trocando um verbo por outro, afinando um adjetivo. Muitas vezes escrevo mentalmente a frase perfeita e volta e meia, se não a anota a tempo, ela me escapa da memória. Resmunguei e me desesperei muitíssimas vezes tentando recuperar aquelas palavras exatas que por um momento iluminaram o interior da minha cabeça e depois tornaram a mergulhar na escuridão. As palavras são como peixes abissais que só nos mostram um brilho de escamas em meio às águas pretas. Se elas se soltarem do anzol, o mais provável é que você não consiga pescá-las de novo. São manhosas as palavras, e rebeldes, e fugidias. Não gostam de ser domesticadas. Domar uma palavra (transformá-la em clichê) é acabar com ela."
Rosa Montero
amei essa crônica Lucas. os carros são cada dia mais assustadores, não? mas creio que um dia se mostrarão inviáveis: todas as ruas e estradas estarão paralisadas por um único e gigantesco engarrafamento! e nós, pedestres, livres fazendo nosso caminho. "Camiño se hace al andar" (Antonio Machado) beijo da tia Zuleica
ResponderExcluirValeu maluquete! Acredito piamente no que disse, no que pensa... Aguardo você nas andanças, pedaladas ... é preciso coragem para ocupar a via pública sem um carro, muita coragem... Beijos
ResponderExcluirjá tinha adorado o filme e adorei sua crônica! beijo! Tádila
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