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lentes

gosto de antepor ao mundo que vejo alguma lente que me ajude a flagrar a potência metafórica que cada coisa leva consigo. ponho fé, mais que ciência: em cada fatia de vida, repousa alguma singularidade (um agradecimento desajeitado, um sorriso incontido, o sabor marcante de quem faz de um prato uma forma de amor, a entoação trêmula dum pedido, o descompasso de quem ligou errado e não sabe que dizer, muitos etc.) que faz de cada momento um mito, um mito esperando pra ser. dificilmente porém consigo pôr essas lentes. meu dia a dia é duro e levanto no mais das vezes sobressaltado por resolver problemas que ainda nem inventei. apenas quando pacientemente estimulado por romances, poemas, películas e às vezes até beijos de novela reúno as condições pra reparar na beleza fugidia das coisas, acreditando muito forte que alguma coisa dura para além do nosso corpo e que até deus pode existir. camila, não. não precisa dessas lentes. acorda e vai dormir com os olhos sempre vigiando a b

Vinícius

Acompanhar o crescimento de uma vida é dispor sempre da possibilidade de reparar na beleza que é própria do que floresce. Não acompanhei dia após dia seu crescimento porque sua beleza foi desde muito cedo se construindo em outros espaços. Pôde, assim, talvez, gosto de pensar, reconhecer como suas formas de beleza muito diferentes: vejo seu sotaque misturado como a metonímia perfeita de quem soube extrair, de cada parte, o sumo melhor que ela podia dar. Quem sabe isso não ajude a explicar como, tão jovem, antes mesmo dos 18 anos agora completados, já enxergue o mundo com lentes num instante tão sensíveis e críticas e, noutro, tão levemente bem-humoradas. Aptidão de quem faz da vida um mosaico bonito, cada vez de uma cor. Ao Vinícius, com todo o amor, 17 de maio de 2020.

Últimos cantos

Sentou-se à mesa quando a noite já encobrira toda a casa. Era uma casa muito só. Feita como para lembrar que o destino daquela família seria sempre a solidão. Festas, amores, amigos, sempre tão abundantes, não apagavam, antes reforçavam, pelo avesso, o destino solitário daquela gente. Talvez, desconfiava ele, apenas a solidão enformasse uma família, dando-lhe a substância necessária à sua própria identificação: é a solidão que nos conjunta — intuía ele, sem precisão de palavra, como se só alcançasse o rumo da ideia. Aquela casa não tinha data e por isso mesmo contava uma história. Estando os vizinhos a mais que três gritos de distância, as noites perfaziam sempre um ritual: era o mundo que se enlutava, deixando só a luz da família-casa a lembrar que ali ainda passava gente, ainda se aquecia uma esperança. Toda noite chegando era o dia recuando com seus bichos alegres que só retornariam quando o mundo clareasse uma vez mais, se deus quiser. Este espetáculo, tão previsível, ganh

Cobrinhas ou um banho de mar

Daqui a poucos dias me mudo pra lá. Bobagem todas as justificativas que tenho me dado e que amparam a decisão de sair, depois de quase três anos, de uma cidade de 20 milhões de habitantes, cujos ensinamentos ninguém jamais vai conseguir me apagar, para uma vila de pescadores cuja população não chega a duas mil pessoas: me mudo mesmo é porque senti que precisava de novo estar perto do mar, aquele especificamente. Nossas lágrimas sentem-se mais à vontade pra despencar no oceano ou isso é só uma metáfora pobre tentando colorir esta crônica? Aliás, bonito imaginar que as lágrimas são filhas do mar — cada um sendo água-e-sal à sua maneira — e que, quando alguém chora fingindo banhar-se no oceano, está apenas tornando possível o retorno da filha-lágrima às suas origens mais misteriosas. Não nasci na Quixaba, mas sempre que alguém me pergunta de onde sou titubeio por uma fração de segundo: é que nasci em Fortaleza, mas não sou bem de lá, deveria dizer. Ou poderia adaptar a resposta que

Nosso dia das mães

Talvez cada um de nós que tivemos a sorte de ter uma figura materna presente em nossa vida guarde em si um dia das mães que é só nosso. Não falo, portanto, do segundo domingo de maio, data que, por alegre que seja, vem de fora pra dentro e pouco diz do momento em que, pela primeira vez, reparamos conscientemente na mulher que ao menos durante certo tempo nos guiou em vários aspectos. Falo do instante — a depender de cada um, mais ou menos duradouro, mais ou menos feliz, mais ou menos encoberto pelo pó do passado distante — que, por alguma razão pouco clara, se nos impõe como a mais evidente das constatações: esta mulher importa para mim. Nunca assumira a ninguém e, embora isso sempre tenha rondado meu imaginário, apenas nestes últimos dias conferi forma mais nítida a este que é, então, o meu dia das mães. Eu era pequeno, cinco, seis, sete anos. Morávamos naquela casa enorme que dava de fundo para todos os meus sonhos. Casa-jardim, casa-goiabeira, casa-casa. Havia muitas

Cheiro de mar

Já sentado, sozinho, na sala de embarque do aeroporto, parecia controlado o momento de despedida vivido há pouco. Mão esquerda procura o queixo, polegar desliza pelo pescoço, indicador repousa sob as narinas: me surpreende um cheiro de mar por debaixo de minha unha. A cena é de ontem, quando retornava para São Paulo — cidade que, entre tantas maravilhas, não tem o mar em que eu me banhara no dia anterior e que persistia no único espacinho em que ele podia mesmo se conservar — apregado entre carne e unha. Mas não é da presença ou ausência de água salgada margeando uma cidade que trato aqui, não me interessam essas superficialidades que distinguem duas cidades, quaisquer que sejam elas. O que me impeliu, nesta noite, depois de alguns anos, a novamente me verbalizar — "morreria, se lhe fosse vedado escrever?", era a pergunta de Rilke, indagação precisa de quem vê na escrita uma maneira, talvez única, de conferir alguma forma estável, imperfeita decerto, a seus anseios