Cobrinhas ou um banho de mar
Daqui
a poucos dias me mudo pra lá. Bobagem todas as justificativas que tenho me dado
e que amparam a decisão de sair, depois de quase três anos, de uma cidade de 20 milhões de habitantes, cujos ensinamentos ninguém jamais vai conseguir me
apagar, para uma vila de pescadores cuja população não chega a duas mil pessoas:
me mudo mesmo é porque senti que precisava de novo estar perto do mar, aquele
especificamente. Nossas lágrimas sentem-se mais à vontade pra despencar no
oceano ou isso é só uma metáfora pobre tentando colorir esta crônica? Aliás, bonito
imaginar que as lágrimas são filhas do mar — cada um sendo água-e-sal à sua
maneira — e que, quando alguém chora fingindo banhar-se no oceano, está apenas
tornando possível o retorno da filha-lágrima às suas origens mais misteriosas.
Não
nasci na Quixaba, mas sempre que alguém me pergunta de onde sou titubeio por
uma fração de segundo: é que nasci em Fortaleza, mas não sou bem de lá, deveria
dizer. Ou poderia adaptar a resposta que um primo muito querido, Mateus, me
disse que oferece quando lhe lançam esse tipo questão: vim de Fortaleza, mas, de onde sou, é história mais embrejada. Ou
talvez passe de agora em diante a afirmar com todas as letras que sou da
Quixaba, nascido e criado?, sim nascido e criado, e isso será verdade porque
acredito muito nessa versão.
Tempos
atrás li um romance — História da menina
perdida?, creio que sim... — em que uma personagem abandonava sua filha por
alguns anos, retornando apenas quando percebia que queria voltar a descascar
maçãs para a menina de um jeito que só ela, mãe, sabia fazer, e que encantava a
filha. Nada de explicações mais abstratas ou que tentassem eufemizar o
rasgo do abandono: a mãe voltou porque notou que aquilo de que mais precisava
em certo momento da vida era poder voltar a descascar maçãs — nem lembro se
eram maçãs, imaginemos que sim — antes de entregá-las, já desnudas, à criança.
Era uma bela cena, que mais invento aqui do que reproduzo: a faca, após
cravar-se sutilmente na parte superior da fruta, perto daquele pequeno caule
que as maçãs às vezes trazem consigo, ia percorrendo-a num só lance, de cima a
baixo, circularmente, sem passar duas vezes por um mesmo ponto. Como a faca não
se despegasse nunca da pele que ia se relevando justamente à medida que o talho
progredia fruta abaixo, restava, ao final do processo, uma tira única da casca,
toda espiraladinha. A menina chamava de cobrinhas
essa casca resultante. Mãe, faz
cobrinhas pra mim? Pois a mãe voltou só pra atender a esse pedido.
Bobagem
achar que nossas escolhas mais importantes se sustentam em longos exercícios
argumentativos, coerentes e abstratas justificativas. Isso a gente inventa só
pra não parecer que enlouqueceu de vez. Reparando bem, a gente vai porque sabe que precisa sentir um cheiro específico, porque quer ver mais vezes o jeito singular como uma dada pessoa passa a mão pelo cabelo antes de proferir uma opinião, porque precisa enxergar novamente um sorriso que não vê pessoalmente há muito tempo, porque carece de pisar um chão que estava enterrado na memória. A gente se mexe mesmo quando quer urgentemente, inexplicavelmente, fazer cobrinhas a
alguém ou só se banhar todo dia no mar de uma Quixaba qualquer.
"O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos."
Marguerite Yourcenar
Marguerite Yourcenar
Que massa!!! Enquanto lia lembrava de tantas histórias e memórias boas desse local! Vai ser maravilhoso tê-lo por perto novamente.
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