lentes

gosto de antepor ao mundo que vejo alguma lente que me ajude a flagrar a potência metafórica que cada coisa leva consigo. ponho fé, mais que ciência: em cada fatia de vida, repousa alguma singularidade (um agradecimento desajeitado, um sorriso incontido, o sabor marcante de quem faz de um prato uma forma de amor, a entoação trêmula dum pedido, o descompasso de quem ligou errado e não sabe que dizer, muitos etc.) que faz de cada momento um mito, um mito esperando pra ser.

dificilmente porém consigo pôr essas lentes. meu dia a dia é duro e levanto no mais das vezes sobressaltado por resolver problemas que ainda nem inventei. apenas quando pacientemente estimulado por romances, poemas, películas e às vezes até beijos de novela reúno as condições pra reparar na beleza fugidia das coisas, acreditando muito forte que alguma coisa dura para além do nosso corpo e que até deus pode existir.

camila, não. não precisa dessas lentes.

acorda e vai dormir com os olhos sempre vigiando a beleza possível do mundo. nunca vi nada assim. embora não dispense e, pelo contrário, consuma incansavelmente essas drogas (livros, filmes, novelas nem tanto), sei que não precisa delas. nasceu ou aprendeu desde muito cedo a vantagem que há em se viver mirando o que é belo, ou potencialmente belo. deve ter recebido um amor muito livre, vento desimpedido que hoje se verte num olhar inclinado para a poesia.

eu, tento imitar. não consigo. quando dou por mim, já fiz mais uma lista de tarefas ordinárias, cheirando a segunda-feira.

camila vem e me aponta, mais que os livros e apetrechos afins, onde estão os óculos que sempre
é hora de pôr.

(pelo seu aniversário, 01/06/2020)

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