Últimos cantos

Sentou-se à mesa quando a noite já encobrira toda a casa. Era uma casa muito só. Feita como para lembrar que o destino daquela família seria sempre a solidão. Festas, amores, amigos, sempre tão abundantes, não apagavam, antes reforçavam, pelo avesso, o destino solitário daquela gente. Talvez, desconfiava ele, apenas a solidão enformasse uma família, dando-lhe a substância necessária à sua própria identificação: é a solidão que nos conjunta — intuía ele, sem precisão de palavra, como se só alcançasse o rumo da ideia.

Aquela casa não tinha data e por isso mesmo contava uma história.

Estando os vizinhos a mais que três gritos de distância, as noites perfaziam sempre um ritual: era o mundo que se enlutava, deixando só a luz da família-casa a lembrar que ali ainda passava gente, ainda se aquecia uma esperança. Toda noite chegando era o dia recuando com seus bichos alegres que só retornariam quando o mundo clareasse uma vez mais, se deus quiser. Este espetáculo, tão previsível, ganhava, vivendo-se sob aquele teto, contornos calmos, permanentes e melancólicos. Aquele dia que se ia não voltaria jamais, os pássaros que se escondiam com a chegada da noite talvez não retornassem na manhã seguinte, porque a noite é escura e poderia sempre pegá-los de surpresa. Esta possibilidade metia no sujeito uma tristeza, mas também uma urgência de viver. Porque toda manhã ele ouvia o cantar dos pássaros, mas como saber se quem cantará amanhã é aquele mesmo que me deixou seu canto hoje — ruminava o homem, pisando em melancolias. Ele, que vivia sozinho ali, queria tanto reter a energia de cada dia vivido, que às vezes sentia uma vontade forte de abraçar o senhor que vez ou outra passava com uma carroça ladeando o terreno, indo buscar suas hortaliças ali por baixo. Não iam, contudo, os dois homens, muito além dos bons dias. À noite rezava pelo senhor da carroça.   

Levantou-se da mesa como quem precisasse chorar — ou era algum antepassado pedindo passagem pelos seus olhos? 

Caminhou lentamente pela sala vazia e, talvez por saber que da janela adiante não colheria mais do que escuridão, foi bater com os olhos numa fotografia de sua mãe. Vinte, trinta anos atrás? Passou os olhos por outras fotos ali próximas, todas com o peso denso do passado distante. Gente querida que partira, que já não estava. Pássaros que foram e não voltaram no dia seguinte. 

Voltou à foto da mãe e num átimo se lhe meteu peito adentro um medo que perguntava sufocante porque já sabia ausente a resposta que ele mesmo cobrava: qual será o dia em que ela não voltará amanhã? Como reter pra sempre seu último canto?

Lá fora, a noite encobria o que a casa trataria sempre de acolher. Solidões. 

Comentários

Postar um comentário