Três ilógicos algarismos
Sabe quando você está olhando o que está ao seu redor da forma mais despretensiosa possível, sem esperar que nada de estranho, de incomum possa lhe atrair a visão naquele ambiente – e de repente é exatamente isso o que ocorre? Sua cabeça (e por consequência seu olhar) já tinha até mudado a direção, mas subitamente você tem de voltar os olhos pra alguma coisa que lhe pareceu anormal, só pra se certificar de que não está enlouquecendo, sabe como é?
Pois foi assim que isto aconteceu comigo.
Acho que faz uma semana: meu sobrinho e eu estávamos no shopping, onde eu tinha de ir pra comprar um presente, quando, já perto de irmos embora, passamos em frente a uma loja de roupa, uma dessas grifes caríssimas cujo nome só não vou citar pra não parecer que o negócio é pessoal. Na vitrine, estava o vestido, personagem principal desta crônica. Passei pela frente da loja a passos largos, mas ainda assim tive tempo de ver os três algarismos que, colocados discretamente na parte superior da vestimenta, inferiam-lhe o preço. Como os números eram pequenos, a princípio pensei que havia visto mal. Óbvio que vi mal, foi o que pensei enquanto continuei andando. Porém, quatro ou cinco passos depois, não resisti: voltei até a vitrine pra verificar.
Ao me ver frente a frente com o vestido e sua pequenina etiqueta, constatei que o número era de fato o que eu observara de relance: 930. Me assustei. Permaneci alguns segundos incrédulo, sendo tomado por uma decepção contida, uma engasgada e silenciosa interrogação. Um sentimento estranho que agora compreendo: ao me deparar com o vestido, me senti por um momento me deparando também com o mundo. Só nós dois: eu observando-o atentamente e ele, indiferente, ostensivo.
Claro que o comércio é assim: alguém estipula um preço para um produto, e os interessados pagam (ou não) o tal valor, de modo que, se aquela peça – simples, diga-se de passagem, pois tive o cuidado de verificar que não era um desses vestidos longos pra casamentos e afins, longe disso – estava à venda, e logo na vitrine, possivelmente alguém paga por ele. Dessa forma, não estou criticando especificamente nem a loja, nem o eventual comprador dessa peça – ainda que ache lamentável a atitude tanto de um, quanto de outro.
Falo do que está na essência, no miolo disso tudo: o nosso mundo, este imenso cenário que erguemos a ponto de vermos alguém pondo menos de um metro quadrado de tecido à venda por 930 reais numa vitrine, ao mesmo tempo em que mais ou menos dois bilhões de pessoas sobrevivem com menos de um dólar por dia.
Então, contrariado, segundos depois, virei-me e parti carregando aquele incômodo, tentando achar sentido naquele emaranhado de sensações.
Já no carro, parado num semáfaro, reparei num mendigo sentado, miserando na calçada. Vi-o assim, lembrei-me forte dos três algarismos presos ao vestido e concluí muito triste: não, não há lógica por aqui.
Frase do dia:
"Todos nós conservamos um livro, talvez um grande livro, mas que no tumulto da nossa vida interna rara vez emerge, ou o faz tão rapidamente que não temos tempo de arpoá-lo."
Julio Ramón Ribeyro
Pois foi assim que isto aconteceu comigo.
Acho que faz uma semana: meu sobrinho e eu estávamos no shopping, onde eu tinha de ir pra comprar um presente, quando, já perto de irmos embora, passamos em frente a uma loja de roupa, uma dessas grifes caríssimas cujo nome só não vou citar pra não parecer que o negócio é pessoal. Na vitrine, estava o vestido, personagem principal desta crônica. Passei pela frente da loja a passos largos, mas ainda assim tive tempo de ver os três algarismos que, colocados discretamente na parte superior da vestimenta, inferiam-lhe o preço. Como os números eram pequenos, a princípio pensei que havia visto mal. Óbvio que vi mal, foi o que pensei enquanto continuei andando. Porém, quatro ou cinco passos depois, não resisti: voltei até a vitrine pra verificar.
Ao me ver frente a frente com o vestido e sua pequenina etiqueta, constatei que o número era de fato o que eu observara de relance: 930. Me assustei. Permaneci alguns segundos incrédulo, sendo tomado por uma decepção contida, uma engasgada e silenciosa interrogação. Um sentimento estranho que agora compreendo: ao me deparar com o vestido, me senti por um momento me deparando também com o mundo. Só nós dois: eu observando-o atentamente e ele, indiferente, ostensivo.
Claro que o comércio é assim: alguém estipula um preço para um produto, e os interessados pagam (ou não) o tal valor, de modo que, se aquela peça – simples, diga-se de passagem, pois tive o cuidado de verificar que não era um desses vestidos longos pra casamentos e afins, longe disso – estava à venda, e logo na vitrine, possivelmente alguém paga por ele. Dessa forma, não estou criticando especificamente nem a loja, nem o eventual comprador dessa peça – ainda que ache lamentável a atitude tanto de um, quanto de outro.
Falo do que está na essência, no miolo disso tudo: o nosso mundo, este imenso cenário que erguemos a ponto de vermos alguém pondo menos de um metro quadrado de tecido à venda por 930 reais numa vitrine, ao mesmo tempo em que mais ou menos dois bilhões de pessoas sobrevivem com menos de um dólar por dia.
Então, contrariado, segundos depois, virei-me e parti carregando aquele incômodo, tentando achar sentido naquele emaranhado de sensações.
Já no carro, parado num semáfaro, reparei num mendigo sentado, miserando na calçada. Vi-o assim, lembrei-me forte dos três algarismos presos ao vestido e concluí muito triste: não, não há lógica por aqui.
Frase do dia:
"Todos nós conservamos um livro, talvez um grande livro, mas que no tumulto da nossa vida interna rara vez emerge, ou o faz tão rapidamente que não temos tempo de arpoá-lo."
Julio Ramón Ribeyro
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