Escrever
Escrever.
Escrevo porque não me suporto, não me comporto. As palavras vão
se ajuntando, se amontoando dentro de mim até que vazam, transbordam – feito um
balão, uma bexiga que vai sendo cheia de água e com isso vai crescendo,
engordando, se avolumando até que, ploft – esparrama a água que continha.
Mas pra mim é difícil, esse negócio de escrever. Dificílimo.
Uma página em branco carrega consigo a maior das contradições: apavora mas
incentiva, assusta mas afaga, desdenha mas motiva.
Quem se mete a escrever logo descobre: aquilo que chamam inspiração é mais lenda que realidade, e imaginar alguém escrevendo com a leveza, com a fluidez de uma primavera parisiense me soa tão verossímil quanto a visita que o Papai Noel nos faz ano após ano. Acho inclusive que isso vale pra outros ramos da arte: pintura, música, cinema. Outro dia vi o Edu Lobo – no ótimo documentário "Uma noite em 67", aproveito pra deixar a dica – dizendo algo assim: "A gente sempre ouve histórias de compositores que estavam não sei onde e aí repentinamente tiveram uma ideia genial, uma melodia linda que veio à cabeça, e aí correram pra casa pra colocar isso no papel e coisa e tal". Então ele arremata, muito sério: "Eu nunca tive isso. Nunca uma melodia veio atrás de mim."
E se engana quem pensa que escrever bem é escrever
gramaticalmente correto. A esse respeito, me lembro muito de uma frase
proferida por um ex-professor meu, de Português: “A Língua nunca deve se
curvar à Gramática.” Perfeito. Claro que quem quer escrever deve conhecer bem
as regras do jogo, da mesma forma que quem pinta um quadro abstrato domina antes as técnicas mais tradicionais, digamos assim. Mas a frase do tal
professor me parece sensata porque, como vinha dizendo, há algo que está para
além da Gramática: o ritmo, a cadência, e às vezes, em nome deles, é mais
do que aceitável sacar propositalmente uma vírgula da frase e cometer assim uma falha gramatical. Quando Clarice
Lispector diz "Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém.
Provavelmente a minha própria", é natural pensarmos que seria mais correto ela
dizer "Escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém, provavelmente a
minha própria". Mas ela não quis ditar esse ritmo – o que a meu ver tornou
o trecho ainda mais belo. Por vezes, tenho a imagem de que escrever é como
chamar alguém pra dançar uma dança em que o autor é quem conduz, quem dita o
ritmo, os passos. Se o leitor gosta desse ritmo, entra na dança e se deixa levar; se não,
pede licença e vai arranjar outro parceiro pra bailar.
Agora, se há algo que não pega bem numa escrita, certamente é
isto: a falta de objetividade, de linearidade – como neste texto que acabo de
escrever. Sinceras desculpas.
Frase do dia:
"(...) as andanças do mundo só nos parecem múltiplas porque não reparamos na repetição dos trânsitos."
José Saramago
Comentários
Postar um comentário