É carnaval
Uma casa vazia, uma rua que silencia e uma alma que decidiu arrefecer até a próxima quarta-feira de cinzas: assim também se pode fazer um carnaval – dentro de si.
Sim, também pode haver alegria em quatro dias vazios. Basta pra isso que nós os façamos, ao mesmo tempo, cheios: de paz, de calmaria, de conexão. Um bom livro à mão, um par de filmes que há tempos se deseja ver, uma cama limpa e macia, uma alma alheia aos pensamentos egoístas do dia a dia, e pronto: o espírito também estará em festa, jogando confete e serpentina sobre si.
Dormir sem ter que pensar em que horas acordar, acordar sem se lembrar de email, política, banco nem conta pra pagar. Por quatro dias. Quem disse que isso também não é uma festa? Comer o que se gosta, e bem devagar, faça o favor, que até já perdi o relógio. Abrir a janela e – a exemplo daquela pessoa discreta que vemos diariamente no trabalho com o uniforme da empresa, mas que numa determinada oportunidade encontramos na fila do cinema, à paisana, e nos parece de repente tão mais bonita... – reparar que a rua, assim, excepcionalmente sem carros ou pessoas se movimentando às pressas ou lojas abertas à espera de clientes, nos transmite um ar tão simples, tão humilde, que quase dá vontade de chorar.
Até a cidade, sempre tão quente, quem diria, decidiu se esfriar neste carnaval. Certamente também já andava sufocada a nossa Fortaleza, um dia bela. É bem provável que tenha, embora apegada à sua população, se sentido aliviada quando se viu mais livre, menos pesada, feito uma mulher mãe de muitos filhos e que, por uns poucos e valiosos dias, se vê afinal sozinha, com olhos só pra si.
Pela janela vejo uma, duas, três, quatro luzes a iluminar diferentes casas no prédio aqui ao lado, o restante todo às escuras. O silêncio é tanto, que até poderia, falando um tantinho mais alto, lhes perguntar como anda o carnaval do lado de lá da rua, ou perguntar se algum deles sabe fazer um purê de batata que amanhã arriscarei preparar mas tenho dúvida num pequeno detalhe, ou ainda lhes convidar para tomar algo aqui em casa, onde brindaríamos aos nossos quatro melancólicos e felizes dias de silêncio e de paz. Mas já são quase onze horas da noite, e inclusive um dos quatro foliões do prédio ao lado, ao apagar a luz de sua casa, me deixou claro que não é momento pra se falar alto nem atrapalhar o sono de quem já dorme. Me quedarei, pois, apreciando sozinho o silêncio quase palpável desta noite tão calma. Me quedarei assim, mas manterei a luz acesa: prefiro avisar que aqui ainda há luz, neste coração de homem só.
Frase do dia:
"(...) mesmo as melhores pessoas estão sujeitas às piores contradições (...)"
José Saramago
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