Adeus, e deve ter ido brincar

Ela chegou aqui em casa ontem, e me bastou ler o nome do destinatário, escrito em letras tortuosas, garranchudas, típicas de quem está ainda tomando o jeito de pegar num lápis – pra adivinhar quem era o remetente daquela carta. Sim, uma carta, mais uma dessas coisas que o nosso mundo acabou por engolir sem nos perguntar se dispensávamos mesmo sua existência. 

Mas a missiva era de fato de quem eu imaginara: foi só olhar o outro lado do envelope e lá estava infantilmente grafado o nome completo do meu sobrinho Vinícius, que não mora por aqui e lamentavelmente só pode nos visitar uma vez ao ano. O destinatário, no entanto, não era eu, mas minha mãe, de modo que preferi manter o envelope lacrado e esperar que ela o abrisse quando chegasse do trabalho.

Mesmo com o envelope fechado, porém, num desses momentos em que percebemos estar um pouco mais sensíveis, mas em que, talvez por estarmos sozinhos, podemos nos deixar guiar por essa passageira embora acentuada sensibilidade – senti meus olhos marejando, feito nuvem besta que passa no céu. Bastou-me enxergar aquelas letras cuidadosas, aquela grafia vacilante que alguns diriam feia, aqueles vocábulos caprichosamente travosos – e meus olhos se encheram de lágrimas. Por quê? Talvez pela saudade do moleque, a qual, dentre todas as outras vezes em que ele esteve conosco, nunca havia me batido tão forte quanto em sua última passagem por aqui, há coisa de um mês; talvez por ter me reconhecido naquelas letras carrancudas que um dia também escrevi (embora ainda hoje minha grafia não seja lá muito apreciável), e com isso de repente ter sido jogado de volta àquele fantasioso mundo infantil que acabamos por sacrificar à medida que vamos crescendo; o certo é que fiquei alguns segundos por ali, absorto, com a carta na mão, a divagar, feliz, em paz.

Quando minha mãe chegou e abriu o envelope, logo pude ver o conteúdo da missiva: numa folha de caderno, quatro cordiais linhas escritas e c'est fini. O rapaz detém mesmo o poder da concisão, não se pode negar. Na parte da saudação, ao final, nada de abraços, beijos ou afins. Deixou simplesmente um "Adeus". E deve ter corrido pra brincar.


Frase do dia: 
"Cansei do esforço de parecer inteligente."
José Saramago

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