O prazer que (por ora?) desfaleceu
Que faz um ator que perde o encanto de estar no palco, que
sentido há num músico que já não se sente tocado pelos sons, que sustenta um
atleta a quem não mais atrai competir? Ou ainda: que faz um cronista que se
desencantou com o colorido da vida?
Esmorece, míngua. Aos poucos.
Vai perdendo a vontade de sorrir, até que já não sorri
mais, mesmo quando julga que deveria; vê-se amargando por dentro, lentamente,
feito serpente a envolver um rato indefeso e branco; sente-se afastando do
mundo como se este não lhe dissesse respeito, ou como se a insignificante parte
que lhe coubesse – escrever – não mais lhe atraísse. Ah, pobre cronista que
padece desse mal...!
Escurece-lhe vista, obstrui-se-lhe o peito, seca-lhe a
vida: o mundo, até outro dia fervilhante e esperançoso, torna-se gélido,
cortante. Vale a pena continuar escrevendo? Acaso sim, escrever sobre o quê: um
mundo colorido que não lhe chega mais aos olhos, portanto insistir numa escrita
que não lhe soa mais verdadeira, íntima? Ou não faltar com a verdade e assim
redigir páginas e páginas da mais sincera melancolia, produzindo com isso textos
que só contribuiriam para a concepção de um mundo sombrio que ele não deseja,
embora dele não se liberte? São perguntas que lhe atormentam, espiral sem fim.
Noutros tempos, rebentavam com frequência crônicas e mais
crônicas em seu imaginário: sentia a boca quase salivando ao pressentir que, naquele
gesto gentil fotografado em meio ao caos do dia a dia, ou naquele cabelo solto da
mulher esbelta que caminha na rua a passos largos, ou na lembrança súbita daquela
infância feliz que não volta nunca mais – em tudo havia crônica. Ou, com perdão
do neologismo chulo, tudo se afigurava ao menos cronicável.
Hoje, porém, parece-lhe estúpido o tal ofício. Juntar alguns vocábulos, formar algumas frases, recheá-las com algumas vírgulas: que mudou nas engrenagens surdas do mundo? Ou, distorcendo um pouco as palavras – estas, sim, valiosas – de Neruda: florescem as plantas das letras, amadurecem seus frutos?
Frase do dia:
"Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver."
Amyr Klink
Amyr Klink
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