Uma despedida
Saí de sua casa com a angustiada sensação de que me
despedira, ali, dela. Estranho, ilógico ter de dizer adeus a alguém ainda com
vida — se ainda há vida, por que não conseguimos reter um tantinho dela, assim
pra sempre? Ou, pergunta mais complexa: continua havendo vida (na gente que
fica) quando não tem mais vida (aquele que se vai)? Isso que persiste e dói na
lembrança da gente que fica
— é vida ainda?
— é vida ainda?
Saí então de sua casa com olhos marejados, de adeus. Ela já
tinha quase noventa, e eu, que estivera ali por uma combinação feliz de acasos,
sabia que provavelmente não voltaria a vê-la. Minha intuição se fez verdade em
menos tempo do que imaginava: poucas semanas depois de ter-lhe feito essa
visita, ela... se fez fina música, diria Guimarães Rosa.
Foi bom ter estado com ela aquele dia. Não tínhamos muito
mais que conversar, ou talvez eu tenha percebido, ali, que não havia razões
para fingir que aquilo não era uma espécie de despedida. Não valia a pena então
investir demais num diálogo protocolar: palavra nenhuma encobriria o sentimento
de adeus que tomava conta de mim naquele fim de tarde. De sorte que pus, sem
nada dizer, minha mão sobre as dela, que por sua vez estavam postas sobre suas
pernas. Foi o suficiente para animá-la e deflagrar entre nós um último elo
verbal sem cheiro de protocolo: "Olha as unhas dele... No capricho...
Legal". Ainda perguntou quem era a pessoa que estava indiciada pela
aliança em minha mão. Apresentei-lhe, fez sinal de positivo. Mantive
minha mão sobre as suas por mais algum tempo. Para minha surpresa, ela ainda guardava
autonomia suficiente para tomar sozinha seu café, comer alguns biscoitos. Fazia
vários anos que não a via e, embora nunca tenha tido contato constante, rotineiro com ela,
me agradavam as suas idas esporádicas a Fortaleza, seu jeito superficialmente
durão.
Na saída, disse-lhe que estava muito feliz em ter ido vê-la.
Não ouvi resposta. Deixei à porta de sua casa algumas lágrimas que se
seguraram, e agora caem.
(À "tia" Edna, minha madrinha, e a todos em quem
sua presença é sentida).
"O que nos toca persiste e se projeta nas coisas seguintes. O intenso tem, portanto, uma qualidade própria - que é a de persistir além da duração de sua causa."
Paul Valéry
Naquele começo de noite, além de comer muitos biscoitos feito uma criança, ela tomava muito café. Talvez, quem sabe, pra ficar acordada mais tempo, te olhando.
ResponderExcluirTe amo. Jessica.
Que bonito! Gosto dessa justa medida a que você chega.
ResponderExcluir