Um David acima da asa delta
Voar de asa delta foi das experiências mais inusitadas, emocionantes que tive nos últimos tempos. Andava inclusive meio desinteressado pela escrita, meio a fim mesmo de dar um tempo dessa tarefa que - embora por vezes me console, preencha - exige muito de mim. Até me sufoca, como se houvesse, a partir do momento em que aqui me sento - frente a frente com mais uma página em branco à minha espera -, um chefe daqueles bem chatos gritando no meu pé do ouvido, me pressionando por resultados melhores.
Mas a asa delta!, voltemos à asa delta. Sempre quis experimentar a sensação de adrenalina que todos diziam existir (e de fato existe) no voo livre, em especial o dessa modalidade. Então pensei em realizar esse desejo e, de quebra, viver uma experiência a tal ponto interessante que me devolvesse a motivação de escrever que, como disse acima, andava meio de baixa.
A experiência é realmente única: a adrenalina invadindo seu corpo; a percepção viva de se estar voando; e a compreensão sentida na pele de que o homem - ao criar uma engenhoca que, sem nem um motorzinho sequer, nos dá uma das poucas faculdades que a natureza nos negou: a de voar - é mesmo um animal com uma capacidade acima da média fazem valer cada segundo no ar.
Mas esse não é mote da crônica. Agora, algumas semanas depois da aventura e confortavelmente sentado pra relatar o fato, o que me salta à mente não é o êxtase, o furor que tive durante o voo, mas, sim, a imagem do menino que nos ajudou (a mim e ao instrutor) a subir a asa delta do pé ao cume da serra de onde decolaríamos. Seu nome era David, mas com a pronúncia americana, tipo Deivid (e, se duvidar, inclusive com essa escrita também). A subida foi um verdadeiro teste de resistência: uma hora e meia de muito sol, num terreno superíngreme (passei meia hora pra descobrir que, segundo nossa nova ortografia, aqui não se usa hífen) e irregular, num mato bastante fechado e com o peso da asa delta constantemente sobre os ombros. Nas inevitáveis paradas que demos, então, puxei conversa com ele, que até então não havia dado uma palavra, nem mesmo pra reclamar do calor (ou da subida, ou do peso da asa, ou do mato, de nada), de onde concluí que ele só podia ser algum tipo de super-herói (mais meia hora e, benza deus, descobri que aqui, sim, continua se usando hífen).
Achava, pelo corpo já bem definido do moleque, que ele tinha uns dezesseis pra dezessete anos, apesar da pouca altura. Tem treze. Mora lá nos arredores da serra mesmo, na casa dos avós. Nunca soube quem é seu pai, e todo santo dia acorda - pasmem - às três da manhã pra ir trabalhar. É isso aí, às três da manhã, o garoto já está no batente. O horário se justifica pelo tipo de trabalho: como se trata de um mercadinho, ele tem de ir, junto com o dono do estabelecimento, até a CEASA comprar as frutas e verduras que poucas horas depois serão entregues de bicicleta (por ele!) na casa de cada cliente que fizer o pedido por telefone. O David (ou Deivid, como disse) sai ao meio-dia do puxadíssimo trabalho que o ocupa de segunda a sábado, e durante a semana entra às duas na escola. Pra ganhar vinte reais a mais por cada subida até o cume da serra, nos fins de semana ajuda algum filhinho de papai que tem o sonho de voar de asa delta.
Confesso que me esqueci de perguntar se ele sabe o que é dormir, mas admito que, depois de ter descoberto tudo isso sobre a sua suada vida, entendi perfeitamente por que ele não reclamava de nada durante a nossa subida: a sua vida o fazia suar muito mais, diariamente.
Eu poderia escrever sobre o inusitado voo que fiz nesse dia, e certamente o teria feito, não fosse mais uma dessas histórias de vida que, ao menos no meu conceito, estarão sempre uns mil pés acima de qualquer asa delta que se aviste no céu.
Frase do dia:
"Eu juro que é melhor
Não ser o normal
(...)"
Arnaldo Baptista/Rita Lee
Mas a asa delta!, voltemos à asa delta. Sempre quis experimentar a sensação de adrenalina que todos diziam existir (e de fato existe) no voo livre, em especial o dessa modalidade. Então pensei em realizar esse desejo e, de quebra, viver uma experiência a tal ponto interessante que me devolvesse a motivação de escrever que, como disse acima, andava meio de baixa.
A experiência é realmente única: a adrenalina invadindo seu corpo; a percepção viva de se estar voando; e a compreensão sentida na pele de que o homem - ao criar uma engenhoca que, sem nem um motorzinho sequer, nos dá uma das poucas faculdades que a natureza nos negou: a de voar - é mesmo um animal com uma capacidade acima da média fazem valer cada segundo no ar.
Mas esse não é mote da crônica. Agora, algumas semanas depois da aventura e confortavelmente sentado pra relatar o fato, o que me salta à mente não é o êxtase, o furor que tive durante o voo, mas, sim, a imagem do menino que nos ajudou (a mim e ao instrutor) a subir a asa delta do pé ao cume da serra de onde decolaríamos. Seu nome era David, mas com a pronúncia americana, tipo Deivid (e, se duvidar, inclusive com essa escrita também). A subida foi um verdadeiro teste de resistência: uma hora e meia de muito sol, num terreno superíngreme (passei meia hora pra descobrir que, segundo nossa nova ortografia, aqui não se usa hífen) e irregular, num mato bastante fechado e com o peso da asa delta constantemente sobre os ombros. Nas inevitáveis paradas que demos, então, puxei conversa com ele, que até então não havia dado uma palavra, nem mesmo pra reclamar do calor (ou da subida, ou do peso da asa, ou do mato, de nada), de onde concluí que ele só podia ser algum tipo de super-herói (mais meia hora e, benza deus, descobri que aqui, sim, continua se usando hífen).
Achava, pelo corpo já bem definido do moleque, que ele tinha uns dezesseis pra dezessete anos, apesar da pouca altura. Tem treze. Mora lá nos arredores da serra mesmo, na casa dos avós. Nunca soube quem é seu pai, e todo santo dia acorda - pasmem - às três da manhã pra ir trabalhar. É isso aí, às três da manhã, o garoto já está no batente. O horário se justifica pelo tipo de trabalho: como se trata de um mercadinho, ele tem de ir, junto com o dono do estabelecimento, até a CEASA comprar as frutas e verduras que poucas horas depois serão entregues de bicicleta (por ele!) na casa de cada cliente que fizer o pedido por telefone. O David (ou Deivid, como disse) sai ao meio-dia do puxadíssimo trabalho que o ocupa de segunda a sábado, e durante a semana entra às duas na escola. Pra ganhar vinte reais a mais por cada subida até o cume da serra, nos fins de semana ajuda algum filhinho de papai que tem o sonho de voar de asa delta.
Confesso que me esqueci de perguntar se ele sabe o que é dormir, mas admito que, depois de ter descoberto tudo isso sobre a sua suada vida, entendi perfeitamente por que ele não reclamava de nada durante a nossa subida: a sua vida o fazia suar muito mais, diariamente.
Eu poderia escrever sobre o inusitado voo que fiz nesse dia, e certamente o teria feito, não fosse mais uma dessas histórias de vida que, ao menos no meu conceito, estarão sempre uns mil pés acima de qualquer asa delta que se aviste no céu.
Frase do dia:
"Eu juro que é melhor
Não ser o normal
(...)"
Arnaldo Baptista/Rita Lee
Lucas,
ResponderExcluirEsse seu olhar pelas coisas simples, que são as principais coisas da vida é emocionante.
Como diz Arnaldo Antunes: "Seu olhar melhora
Melhora o meu..."
bj
Eliane
é linda essa tbm, não se sinta pressionado, mas já estou esperando a próxima! ;) bjo! Tádila
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