Pela janela do carro


Eu vinha distraído, e de dentro do carro, que me levava num sábado à tarde de volta pra casa, olhava pela janela com um olhar conformado, quieto. Estava no banco do passageiro, e acredito que não poderia estar num lugar mais adequado; não podia estar num local mais consoante o meu estado de espírito daquele momento; estava no banco do passageiro e sentia como se eu fosse simplesmente... um passageiro – alguém que está de passagem, pelo mundo.

O interessante é que há mesmo um certo fascínio com essas janelas que se movem: janelas de trem, de carro, de ônibus. É como se o seu mundo - ao menos durante a locomoção e desde que você se permita esse envolvimento - pudesse caber todinho ali, dentro daquele inexpressivo quadrado. Basta você deixar o olhar correr solto pela janela afora e ir absorvendo tudo o que cruza seu olhar, como se aquilo fizesse parte de um espetáculo, cabendo a você só o simples porém valioso papel de assistir, de se deleitar com esse teatro, que é a vida em movimento.

Pois assim eu vinha, completamente absorto em minha tarefa de espectador. Com o olhar brando, sensível ao que se me apresentava, minha vida ia ficando esquecida momentaneamente, como se dela nada mais importasse, nada mais me dissesse respeito; tudo o que me despertava interesse estava ali, à vista naquela janela. Num céu quase sem nuvens, sol a pino, passava de tudo pelo meu olhar: as mais diversas cores, formas e movimentações, o que ia me deixando satisfeito e cada vez mais entorpecido.

Ia já acreditando que o espetáculo caminharia naquela toada até o fim, o que aliás já me deixaria bastante saciado. No entanto, lá pelas tantas, vi surgir aquela que sem dúvida era a personagem principal, aquela que o diretor guardara mais pro fim da peça, pra surpresa e encantamento geral de plateia.

O carro nesse momento passava bem devagar, e como ela estava parada, esperando a hora certa pra atravessar a rua, pude observá-la durante alguns longos segundos. Pele um pouco morena, só um pouco, e agradavelmente bronzeada; cabelos lisos, muito lisos e pretos e ainda molhados, caindo pouco abaixo dos ombros; e um rosto fino, de linhas corretas, esbeltas. Ela olhava pra rua com um olhar perdido, à espera daquela infinidade de carros que não a deixava passar, que não a deixava seguir seu caminho.

Eu poderia agora dizer que durante um efêmero momento, uma fração de segundo, ela cruzou seu olhar com o meu, e nós sorrimos tímida e simultaneamente, num raro e inesquecível momento de ternura. Poderia dizer isso; sim, poderia. A crônica certamente ficaria mais glamourosa, e o leitor quem sabe até mais envolvido; além disso, ninguém poderia me desmentir. Mas não falto com a verdade, e nesse caso, lamento: ela nem sequer olhou em minha direção.

Ah, mas antes que eu esqueça: como se não bastasse sua singular beleza, um detalhe lhe conferia um toque de fragilidade sem o qual, ouso até dizer, esta crônica nem teria existido - ela estava com a perna engessada até o joelho, e estava sozinha, sem ninguém para ajudá-la a atravessar a rua, para segurar-lhe a mão ou perguntar-lhe se a perna doía naquele momento.

Tive então uma vontade súbita e tola de pedir pra parar o carro e ir até lá, confessar-lhe toda a minha recente história de amor por ela - nascida segundos atrás, e por isso mesmo tão fervilhante e pura. Mas não o fiz; vi-a passar, simplesmente; passar por minha vida com a indiferença de quem passa - pela janela de um carro em movimento.


Frase do dia:
"Depois de tantos amores calculados, o gosto sabrido da inocência tinha o encanto de uma perversão renovadora."
Gabriel García Márquez

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