Porque o tempo não é mais de cobranças
"Luquinhas... quando é que te pago essa?"
Fui à da casa de minha avó Teresinha ontem à noite, e a frase, dita arrastadamente por ela quando eu já estava de saída, continua incrustada em meus pensamentos. O motivo da fixação é simples: não lhe respondi com exatidão o que gostaria de ter dito. Dessa forma, escreverei – escrevemos todos, aliás – em busca da resposta que não foi dada por completo, do olhar que sempre compreende tudo mas se perde vazio no segundo seguinte, escreverei, enfim, à procura do sentimento que embora fisgado não foi de todo arpoado.
Eu estava jantando sozinho quando o telefone de casa tocou: era da residência de minha avó, que havia caído da cama, cortado o pé, machucado um pouco a testa e, portanto, precisava de ajuda. Apressei-me em ir até lá. Vendo que o corte poderia inflamar e que demandava um curativo simples mas minimamente cauteloso, dona Edimar, que é sua cuidadora no período da noite, minha avó e eu seguimos até a farmácia-ambulatório mais próxima. Tudo sob controle, deixei as duas em casa – não sem antes ouvir da octogenária Teresinha a tal frase, que me pegou de surpresa. Claro que ainda tive tempo de juntar uma meia dúzia de vocábulos e lhe dizer por nada, isso é só um favor, a gente faz com maior prazer.
Mas, como dito no segundo parágrafo, faltou algo em minha fala: dizer que não é tempo de cobranças, vó.
Pois sim, passamos a vida quase inteira sendo exigidos. Quando criança, nos cobram uma boa educação e que não fiquemos de recuperação na escola. Um pouco mais à frente, que saibamos escolher uma profissão e que sejamos bons nela, muito bons, de preferência o melhor, pois é quase proibido se viver modestamente. A seguir, a vida pergunta pelo casamento, pelos filhos, pelo sucesso na carreira, pela saúde e por mais uma infinidade de atribuições que a sociedade vai discretamente nos demandando, e ai de quem não se apressar em quitar todas essas dívidas.
Porém, chega um momento em que nada disso importa mais. É hora de mandar a vida e todo o seu pacote de exigências se danar. Não há mais por que se preocupar: os filhos e netos estão crescidos e resolvidos, os bisnetos bem-assessorados, e assim, a vida, feito um chefe exigente porém justo, lhe estende a mão dizendo: sabe todas aquelas preocupações e responsabilidades que lhe foram incutidas durante todos esses anos? Esqueça tudo. É hora de descansar, de sorrir mais e afagar mais e amar mais, é chegado o momento de acordar sem ter que se perguntar se o neto já foi pra escola, se o filho pagou a conta que devia, se o mercantil do mês já foi feito. É hora de gozar o merecido descanso por uma vida digna, correta.
Assim, se por acaso, certo dia, se cai da cama e com isso se interrompe o solitário jantar de um neto, também não há com que se preocupar – pode até agradecer se quiser, vó, mas esqueça o pagamento, que o tempo é curto e não mais de cobranças.
Frase do dia:
"(...) porque escrever para passar uma mensagem trai a função primordial da narrativa, seu sentido essencial, que é o da busca do sentido. Escreve-se, então, para aprender, para saber; e não é possível empreender essa viagem de conhecimento levando previamente as respostas."
Rosa Montero
Fui à da casa de minha avó Teresinha ontem à noite, e a frase, dita arrastadamente por ela quando eu já estava de saída, continua incrustada em meus pensamentos. O motivo da fixação é simples: não lhe respondi com exatidão o que gostaria de ter dito. Dessa forma, escreverei – escrevemos todos, aliás – em busca da resposta que não foi dada por completo, do olhar que sempre compreende tudo mas se perde vazio no segundo seguinte, escreverei, enfim, à procura do sentimento que embora fisgado não foi de todo arpoado.
Eu estava jantando sozinho quando o telefone de casa tocou: era da residência de minha avó, que havia caído da cama, cortado o pé, machucado um pouco a testa e, portanto, precisava de ajuda. Apressei-me em ir até lá. Vendo que o corte poderia inflamar e que demandava um curativo simples mas minimamente cauteloso, dona Edimar, que é sua cuidadora no período da noite, minha avó e eu seguimos até a farmácia-ambulatório mais próxima. Tudo sob controle, deixei as duas em casa – não sem antes ouvir da octogenária Teresinha a tal frase, que me pegou de surpresa. Claro que ainda tive tempo de juntar uma meia dúzia de vocábulos e lhe dizer por nada, isso é só um favor, a gente faz com maior prazer.
Mas, como dito no segundo parágrafo, faltou algo em minha fala: dizer que não é tempo de cobranças, vó.
Pois sim, passamos a vida quase inteira sendo exigidos. Quando criança, nos cobram uma boa educação e que não fiquemos de recuperação na escola. Um pouco mais à frente, que saibamos escolher uma profissão e que sejamos bons nela, muito bons, de preferência o melhor, pois é quase proibido se viver modestamente. A seguir, a vida pergunta pelo casamento, pelos filhos, pelo sucesso na carreira, pela saúde e por mais uma infinidade de atribuições que a sociedade vai discretamente nos demandando, e ai de quem não se apressar em quitar todas essas dívidas.
Porém, chega um momento em que nada disso importa mais. É hora de mandar a vida e todo o seu pacote de exigências se danar. Não há mais por que se preocupar: os filhos e netos estão crescidos e resolvidos, os bisnetos bem-assessorados, e assim, a vida, feito um chefe exigente porém justo, lhe estende a mão dizendo: sabe todas aquelas preocupações e responsabilidades que lhe foram incutidas durante todos esses anos? Esqueça tudo. É hora de descansar, de sorrir mais e afagar mais e amar mais, é chegado o momento de acordar sem ter que se perguntar se o neto já foi pra escola, se o filho pagou a conta que devia, se o mercantil do mês já foi feito. É hora de gozar o merecido descanso por uma vida digna, correta.
Assim, se por acaso, certo dia, se cai da cama e com isso se interrompe o solitário jantar de um neto, também não há com que se preocupar – pode até agradecer se quiser, vó, mas esqueça o pagamento, que o tempo é curto e não mais de cobranças.
Frase do dia:
"(...) porque escrever para passar uma mensagem trai a função primordial da narrativa, seu sentido essencial, que é o da busca do sentido. Escreve-se, então, para aprender, para saber; e não é possível empreender essa viagem de conhecimento levando previamente as respostas."
Rosa Montero
Lucas, você não existe...Mas que nada, existe sim, e que bom que existe, VIVA O LUCAS!
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